O mote deste ano é “Planeta saudável, pessoas saudáveis”. Porquê este tema?

Este tema foi lançado pela WONCA (World Organization of Family Doctors), que pretende alertar estes profissionais, assim como a população em geral, para a importância desta questã,o que já está a ter um impacto na nossa saúde. Pretende-se estimular mudanças na prática clínica fomentando iniciativas verdes por todo o mundo. Os médicos de família estão numa posição privilegiada para liderar este movimento que é imperativo, funcionando como modelos e agentes de mudança.

Qual a importância do conceito One Health na Medicina Geral e Familiar?

O conceito de One Health (Uma só Saúde), reconhecido como uma abordagem sinérgica e interdisciplinar entre a saúde humana, animal e ambiental, tem ganho cada vez mais destaque internacionalmente, implicando a colaboração entre os vários setores dedicados a estas áreas, com o objetivo final de se conseguir um mundo mais equitativo, saudável e sustentável. Dessa forma, é premente uma abordagem integradora e unificadora para gerir o aumento dos riscos para a saúde no seu todo (humana e animal) devendo-se, em larga medida, aos grandes desafios que se colocam atualmente à humanidade, como o aquecimento global e as alterações climáticas, as mudanças comportamentais e de padrões de consumo do ser humano, ou a crescente globalização.

Assim, estes desafios oferecem inúmeras oportunidades para que os microrganismos já existentes se alterem e evoluam para novas formas, eventualmente mais resistentes e mais patogénicas. O crescimento desmedido da população humana, com consequente deflorestação, deterioração dos ecossistemas e dos recursos hídricos, bem como o aparecimento de doenças infeciosas emergentes com potencial zoonótico e pandémico, constituem uma das maiores problemáticas da saúde global. Mas estes desafios não se esgotam nas doenças infeciosas. Outros agentes, como toxinas naturais, assumem atualmente uma preocupação crescente com um potencial futuro impacto na saúde das populações.

O médico de família, pela proximidade, continuidade de cuidados às suas famílias, e muitas vezes por ser o primeiro a contactar com a doença, deve estar sensibilizado para os novos desafios que a saúde enfrenta atualmente. Assim, também nós, nos cuidados de saúde primários, devemos acompanhar estas mudanças e adquirir as ferramentas necessárias à prática clínica diária, observando as famílias como um todo, e dessa forma, olhar para a saúde animal e ambiental como parte integrante da saúde, única e global.

Atualmente, quais são os fatores mais impactantes na saúde da população?

O impacto das alterações climáticas na saúde da população verifica-se em diversos órgãos e sistemas e por vários mecanismos. Olhando para Portugal, está previsto um aumento significativo da temperatura média em todas as regiões do país até ao fim do século XXI, acompanhado de um aumento na frequência e intensidade das ondas de calor, o que resulta em maiores taxas de mortalidade.

A deterioração da qualidade do ar através do aumento da poluição do ar conduz a exacerbações de doenças respiratórias crónicas como a asma ou a doença pulmonar obstrutiva crónica. O aumento dos incêndios florestais no verão também contribui para este efeito. Também estão a aumentar outros fenómenos climáticos extremos como as cheias, o que pode ter um forte impacto a nível da saúde mental da população. A variabilidade na precipitação aliado ao aumento das temperaturas também torna Portugal mais vulnerável a doenças infeciosas transmitidas pela água e alimentos.

Poderá igualmente aumentar o risco de doenças transmitidas por vetores como a leishmaniose, a doença de Lyme, a febre escaro-nodular e o aparecimento de doenças como a dengue. Todos os efeitos descritos podem pôr em causa a estabilidade do nosso sistema de saúde. As alterações climáticas implicam custos associados à maior procura dos cuidados de saúde e necessidade de mais intervenções de saúde pública, custos associados à perda de dias de trabalho e menor produtividade, assim como custos associados à perda de bem-estar.

“Prevenir, preparar e gerir os riscos relacionados com o impacto das alterações climáticas é nosso dever enquanto médicos de família.”

Considera que deva existir mais formação para os médicos de MGF relativamente a esta área, tendo em conta que estes especialistas têm um papel importante na prevenção de doenças?

O papel do médico de família na abordagem One Health é múltiplo, abrangendo as funções de cidadão, médico e defensor. Ainda que possa parecer uma abordagem de domínio exclusivo de profissionais das várias áreas envolvidas, procura, na verdade, ser uma visão colaborativa na comunidade, em que todos os cidadãos possam ser agentes de mudança. Nesse sentido, todos devemos adotar um papel ativo na proteção do nosso planeta, promovendo estilos de vida mais saudáveis, como a escolha de uma dieta mais respeitadora do ambiente (menos alimentos processados, menos carne vermelha e mais legumes), o uso de transportes ativos (andar a pé ou de bicicleta, em vez de utilizar meios de transporte poluentes), e a maior exposição a espaços verdes. No entanto, ainda não é claro o modo como os médicos podem incentivar os seus pacientes a adotar mudanças de comportamento com base nestes argumentos.

Uma das barreiras essenciais que necessita de ser colmatada é o desconhecimento, tanto pela sociedade em geral, como pelo setor da saúde do conceito One Health e do papel privilegiado que os médicos ocupam como promotores de mudança na população. A divulgação deste conceito é a chave para promover a conservação do ambiente numa perspetiva alargada, não limitada às medidas de combate às alterações climáticas. Nesse sentido, ao integrar o conceito One Health na educação desde a infância e ao longo da formação médica, criaremos uma geração mais consciente e preparada para enfrentar os desafios globais da saúde.

Pelo facto de o médico de família ser a principal porta de acesso da população a cuidados de saúde, e pela estreita relação que estes têm com a comunidade, torna-se premente que esta classe médica se torne conhecedora desta abordagem. Por exemplo, em 2019, a WONCA elaborou uma declaração intitulada “Declaration Calling for Family Doctors of the World to act on Planetary Health”, com o objetivo de sensibilizar o médico de família para a importância da saúde planetária na sua prática clínica e motivá-lo a mudar, enumerando uma lista concisa de intervenções a implementar e os co-benefícios para a saúde e o ambiente.

Cláudia Gomes

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