São horas de jantar e no Pé de Salsa emergem já alguns "passistas", alternando entre o petisco, a "lambreta" e um pezinho de dança neste espaço aberto com vista para a baía de Luanda, onde arranha-céus iluminados dão um brilho adicional ao ambiente festivo e disfarçam a pobreza e o desleixo da cidade.

Com os decibéis elevados ao máximo, Natchova Hendrik, fundadora da escola de dança Pé de Salsa, faz-se ouvir no microfone e convida experientes e novatos a participarem numa primeira dança coletiva, sincronizando os corpos ao ritmo da salsa.

Muitos são estrangeiros que estão a aprender a dançar e aderiram à febre da kizomba, tornando-se frequentadores habituais do espaço, como o italiano Andrea Sacchi, gestor financeiro numa empresa petrolífera.

Pela segunda vez em Angola, depois de incursões noutros países, começou a dançar kizomba há cerca de um ano e aproveita as quartas-feiras para praticar.

"É importante dançar, sobretudo kizomba, faz parte da cultura e por isso fiz questão de aprender, tal como a língua", disse à Lusa o italiano, que fala também espanhol e russo.

Para Andrea, "dançar é abraçar a cultura" e, por isso, "estar em Angola sem dançar kizomba é como chegar a Itália e não comer pizza".

Diz que a kizomba é para todos, estrangeiros e angolanos, com mais ou menos jeito: "a dança é um desporto, tens de treinar mas podes aprender, porque dançar não implica só o ritmo, tens de fazer as figuras, o homem tem um papel, a mulher outro".

Foi operado recentemente e ainda não tirou os pontos, mas decidiu que o apelo da dança era mais forte do que as recomendações médicas: "disseram-me que não podia, mas isto é uma paixão", diz, antes de se encaminhar para a pista.

Irene Sousa, residente em Angola desde 2013 e diretora de operações numa instituição de ensino, é outra entusiasta.

"Sempre gostei de dança", sublinha a portuguesa de 61 anos, que começou na kizomba em Luanda, em 2021, depois de passar por um workshop em Portugal, onde já praticava danças de salão.

A kizomba surgiu como uma escolha natural para quem está em Angola, sublinha Irene, assumindo a preferência pelos ritmos africanos.

Começou numa escola de dança, teve aulas particulares e a partir daí foi evoluindo para o dançar "no social".

"Agora já posso ir a qualquer lado e não fico lá (sentada)", sorri.

Afirma que é sempre mais fácil ter um par para "ter a dança garantida", mas quem está sozinho também encontra facilmente companhia entre os membros da enorme comunidade dançante de Luanda.

"As pessoas acabam por se conhecer e vão dançando uns com os outros", realça Irene Sousa, que se encantou com o ritmo e as letras da kizomba.

"Falam de amor e desamor, do dia a dia, acho que espelham muito a alma dos angolanos", frisa.

Irene diz que todos podem aprender a dançar, mas admite que os angolanos o fazem de forma "mais intuitiva, mais natural" porque já nasceram na kizomba, enquanto os estrangeiros têm de fazer uma aprendizagem e os movimentos saem "mais forçados".

Natchova Hendrik, 48 anos, descreve o Pé de Salsa como um encontro de gerações e classes sociais: "aqui vem desde o miúdo do bairro até ao ministro", salienta a professora de dança, formada em engenharia eletrotécnica e que trabalha na indústria petrolífera.

"É um meio que cria união, interação entre várias nacionalidades e onde todos se sentem bem", refere a responsável da escola Pé de Salsa, fundada em 2005 e onde muitos dão os primeiros passos na kizomba.

No início, conta, eram principalmente estrangeiros que procuravam a escola, mas hoje em dia são cada vez mais os nacionais que acorrem à Pé de Salsa porque querem evoluir na dança e nos passos.

"Estão habituados a dançar em casa, aprendem com os familiares, mas querem ter mais técnica", observa a promotora das noites afro latinas.

Natchova salienta que não é preciso ser africano ou angolano para sentir o ritmo: "qualquer um pode aprender, a diferença é que uns estão mais habituados, desde pequenos, ao toque". Um estrangeiro "pode levar um pouco mais de tempo no início", mas consegue dançar a partir do momento em que se liberta, garante.

A californiana Mariah Stacy veio de Los Angeles e está pela primeira vez em Angola, país que descobriu através de amigos angolanos e da kizomba, que pratica há mais de seis anos.

É uma "energia" que faz "deixar os problemas para trás", caracteriza.

A jovem, de 26 anos, analista de conformidade no departamento legal de uma empresa, integra um grupo de 32 estrangeiras, de várias nacionalidades, que têm em comum o gosto pela kizomba e vieram viver "uma experiência cultural" em Angola, marcada pela dança, música e história.

Mariah destaca a relação entre todos estes vetores e relata como foi ficando cada vez mais imersa na cultura angolana à medida que dançava e convivia com originários deste país em festas, aniversários e outros eventos, até começar a aprender o português.

"Uma coisa levou a outra. Eu acho que a minha experiência em Angola está a ser muito diferente porque falo português", diz à Lusa, a propósito de "um dia lindo" passado no Kilamba, em que assistiu a um concerto com artistas consagrados como Yuri da Cunha, Ary e os já "kotas" -- apesar de o nome da banda se manter - Jovens do Prenda.

A kizomba e o semba foram recentemente classificados como património nacional de Angola e o Governo está a preparar a candidatura destes géneros musicais e estilos de dança a Património da Humanidade, inscrevendo-os na lista de património imaterial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

*** Raquel Rio (texto), Ampe Rogério (fotos), da agência Lusa ***

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