Nuno Delgado tinha 7 anos quando começou a praticar judo. Era um miúdo hiperativo, disléxico e com dúvidas sobre a sua identidade e foi na modalidade que encontrou o seu lugar.

Hoje, quarenta anos depois, é das figuras mais importantes do judo com uma coleção grande de palmarés. O primeiro grande prémio foi o de campeão europeu em 1999 e foi esta vitória que o permitiu  sonhar com a medalha olímpica.

A modalidade já marcava presença nos Jogos Olímpicos desde a sua primeira edição, 1964, em Tóquio, mas até 2000 o melhor resultado tinha sido o sétimo lugar. Foi Nuno Delgado que alterou o rumo da história da modalidade. Em Sidney, a 19 de setembro, subiu ao terceiro lugar do pódio e mordeu a medalha de bronze.

Nuno Delgado
Nuno Delgado créditos: DR

O sonho sempre foi ser campeão Olímpico, mas uma série de lesões e circunstâncias acabaram por afastá-lo desse objetivo e, em 2005 abandona a alta competição.

A modalidade continuou a ser a sua grande arma de combate e foi na educação e na passagem dos valores e filosofia do judo que voltou a sonhar ao abrir a Escola de Judo Nuno Delgado, em 2006.

O sonho ainda está de pé e é lá que se treinam campeões para a vida, não fosse o seu mentor , também ele, um eterno campeão.

Este ano celebramos 50 anos de democracia, começo por perguntar, o judo é uma modalidade democrática?

Olha, eu considero que sim. Em primeiro lugar, porque o judo permite-nos adaptar a qualquer situação e permite que qualquer pessoa consiga, com esforço, empenho e dedicação, tirar proveito da modalidade. Pode ser alto, gordo, magro, a pessoa enquadra-se sempre, porque têm categorias de peso. E uma coisa muito importante, que não tem diretamente a ver com a democracia, mas desde praticamente a sua origem,  mulheres praticavam, mesmo que às escondidas, na casa do Mestre Jigoro Kano. Houve sempre acesso à prática do judo por mulheres. E, por isso, eu acho que o judo é um desporto bastante democrático.

Qual é a sua relação com o 25 de Abril, apesar de não ter vivido aquela altura?

A minha relação é forte, porque aquele senhor que está ali no meio [aponta para uma fotografia] que se chama Filipe Rosas é o meu padrasto e teve preso, foi exilado. Do lado da minha mãe, ela esteve envolvida na luta pela libertação de Cabo Verde e depois voltou para a ilha para ir dar aulas e para ajudar o país. A irmã dela, a Helena Lopes da Silva, foi fundadora do PSR e do Bloco de Esquerda. Portanto, tive pessoas na minha família que tiveram diretamente envolvidas na Revolução, e que nos transmitiram todos esses ensinamentos. E ainda, por acaso, este fim-de-semana estava a fazer um trabalho com a minha filha Maria, a mais pequenina, sobre o que é a liberdade e aquilo que eu noto é que apesar de pessoas da minha geração terem tido contacto com o 25 de Abril, eu acho que já não se valoriza verdadeiramente o que é a liberdade.

E o que é a liberdade?

A liberdade é uma coisa essencial. Não ser livre é talvez das coisas mais prejudiciais para uma sociedade, como uma pessoa não ter direito de se poder expressar e ter de viver condicionada. E eu acho que todos nós, independentemente da  educação política, temos de respeitar a liberdade, que não é da esquerda nem da direita, é de todos os portugueses. E aí, eu olho para estes 50 anos do 25 de abril à espera de um bocadinho mais de unidade. Para eu ser livre, eu tenho de abdicar de uma percentagem da minha liberdade para que os outros também sejam livres. Um dos  princípios máximos do judo é “Jita Kyoei”  que quer dizer 'benefício mútuo'. No judo nós treinamos para sermos fortes, mas somos fortes para ser úteis. E para mim, isso é que é liberdade. Liberdade não é fazer o que eu quero. Liberdade é fazer aquilo que posso no meio dos outros, porque sem os outros, não há liberdade. Se o princípio são as pessoas, ter liberdade é ter liberdade entre pessoas e ter respeito uns pelos outros.

"O desporto ainda precisa de se impor na sociedade portuguesa"

 

E o que representa o desporto, ou devia representar, numa sociedade?

Essa é a pergunta da minha vida. Acima de tudo, o desporto, para mim, é uma forma de expressão humana. Eu acho que o desporto faz muito mais sentido estar enquadrado nas atividades culturais, porque o desporto, desde a génese antropológica do homem, é uma representação das atividades humanas e representa acima de tudo o conceito da superação. Foi talvez esse o grande ponto que fez o homem ser diferente de todas as outras espécies, é aquele que procura sempre a superação. E eu acho que isso não é muito bem entendido na nossa sociedade portuguesa, ou lusófona, muito até relacionado com esta época do 25 de Abril…

Porquê?

Porque existiu um fenómeno, uma organização chamada Mocidade Portuguesa, que associou a prática desportiva à forma de controlo, à parte militar, à ordem, à condição física, que são coisas completamente diferentes. E tudo isso acho que transformou muito a memória cultural dos portugueses em relação ao desporto. Curiosamente, nas ex-colónias o desporto era uma atividade nobre, tanto no Brasil como em Angola, em Moçambique, até nas minhas as origens em Cabo Verde. As pessoas viam o desporto como uma atividade nobre e que era algo que efetivamente contribuía para o desenvolvimento humano. Isso não acontecia no continente...

E o Nuno tem procurado valorizar esta questão, até mesmo com a criação da Escola de Judo Nuno Delgado…

Uma grande parte do meu percurso tem sido seguir outras pessoas que estudam isso. O professor Manuel Sérgio foi um dos grandes pensadores da rutura, aqui em Portugal. Ele tentou sempre mostrar que o desporto é uma atividade humana e não é uma atividade considerada das ciências naturais, onde só se mede a condição física. É necessário mudar a ideia que os professores de educação física estão lá para educar o físico, que era o que se fazia, na verdade, na Mocidade Portuguesa, e esse conceito está completamente errado. Em Portugal ainda continua a estar muito presente na escola. O currículo também estava errado: os miúdos começavam a praticar educação física aos 11 anos, no segundo ciclo, quando já tinham perdido todas as janelas de oportunidade de desenvolvimento e que efetivamente esta disciplina poderia ter impacto e por aí adiante…

Nuno Delgado e a escola
Nuno Delgado e a escola Nuno Delgado dá uma aula de judo a crianças créditos: DR

Daí ter projetos com crianças….

Sim, quando acabei a minha carreira como atleta [2005] fui estudar em Inglaterra e criei um projeto que tentaria ser o exemplo do que devia ser a Escola. Felizmente, não passaram 50 anos, passaram cerca de 20 e poucos anos e estamos a fazer isso mesmo agora nas escolas. A grande parte da atividade da Escola de Judo é trabalhar em cooperação com municípios, que agora tutelam as escolas públicas, e estamos a ir a onde tem que ser, que é na base - o jardim-de-infância – oferecer judo que na minha perspetiva é das modalidades que mais bem está preparada para lidar com esta ideia do desporto como uma ferramenta de educação O Jigoro Kano dizia que o judo não é uma arte marcial, o judo é uma ferramenta educativa que serve para treinar uma pessoa em todos os seus âmbitos. E é engraçado ver isso, porque na verdade os samurais não treinavam só com espadas, com os arcos, eles faziam pintura, poesia, a arte de lidar com as flores. Portanto, havia toda uma sensibilidade de que para se treinar um samurai, era preciso tratar do todo. E é isso que eu acho que o desporto ainda precisa de se impor na sociedade portuguesa.

Daí identificar-se muito com a frase do Manuel Sérgio “não se treinam os jogos, treinam-se as pessoas que jogam”…

Eu acho que essa frase significa tudo. Eu tenho uma grande afinidade com o professor Manuel Sérgio, é um grande mentor para mim, é uma pessoa que me inspirou muito. A frase é tão simples, mas a frase é muito complexa, porque o que o Manuel Sérgio conseguiu fazer foi mudar o paradigma e dizer às pessoas da ciência do desporto que o objeto de estudo era outro. O objeto de estudo não eram os órgãos físicos, a energia e as moléculas ou a técnica do movimento, mas sim a essência da pessoa. E a essência da pessoa é aquela necessidade de se superar. Esse é o ponto de partida para se treinar tudo o resto. E essa frase tem sido uma frase que me tem motivado…

"Se eu não conseguisse esses resultados, eu ia desistir do judo"

 

Aos 7 anos começa a fazer judo e foi algo que o “salvou”. O que é o judo fez pelo Nuno Delgado?

Olha, deu-me sentido, deu-me autoconfiança, autocontrolo, deu-me a oportunidade de criar laços de amizade e de me enraizar em Santarém, onde eu me sentia perdido. Santarém, na altura, estamos a falar em 1983, era o fim do mundo. Eu contava pelos dedos das mãos as pessoas que eram parecidas comigo na rua. Viam-nos até com alguma estranheza. Ainda havia ali muita carga negativa da guerra colonial e que o preto era o mau. E eu não percebia isso porque, em minha casa, nós éramos uma família multirracial: o meu irmão era branco, o meu padrasto também era branco português. Eu perguntava à minha mãe ‘mãe, o que é cabrito? Eles dizem eu sou cabrito’ e a minha mãe tentava explicar.  Notava-se alguma ignorância, e algum receio, porque também havia muitas pessoas retornadas e havia ainda essa carga toda, nos anos 80 ainda estava muito presente…

E é curioso que 50 anos depois ainda lidamos com estes problemas.

Sim, mas eu acho que de outra maneira. Eu noto pelas minhas filhas, ninguém chama a minha filha de preta por estar comigo. Eu acho que já não existe essa carga da guerra colonial, agora existem outros desafios e eu acho que o problema é constante, porque a natureza humana tem este impulso de se defender do outro, do diferente. Agora, também nos cabe a nós educar para mudar esses impulsos. Nós todos os dias estamos a educar os nossos impulsos. E é isso que eu gostava de ver mais presente, porque vejo o mundo muito polarizado. Já me pediram várias vezes para participar em campanhas e eu não participo, porque, como disse o Nélson Mandela, eu não tenho raça, eu sou um ser humano. Para mim, dizerem mal de um preto, de um paquistanês ou de um brasileiro, seja onde for, estão a dizer mal de mim, porque é uma pessoa. Enquanto não conseguirmos globalizar  esta ideia e passar isto para os mais novos, as coisas não vão mudar.

Quando aos 18 anos veio estudar para a Faculdade de Motricidade Humana, qual era o plano?

Eu sempre quis ser cientista, antes de educação física, a minha cena era a ciência, a biologia, eu era dos melhores alunos em biologia, era muito curioso, gostava muito. Lia Carl Sagan e gostava muito do Jacques Cousteau, tinha muito essa veia para o lado científico. Mas houve uma altura, e não me consigo recordar quando, que decidi pela educação física e só queria ir para a Faculdade de Motricidade Humana, não pus mais nenhuma faculdade nas minhas opções. A minha mãe, claro, não gostou da ideia. Eu tenho uma vaga ideia que tem que ver com o facto de, na altura, o Carlos Queiroz ser professor lá e ele treinou aquela geração fantástica como o João Pinto, o Rio Costa, etc. E pronto, fiz duas escolhas: Quero ir para a Faculdade de Motricidade Humana e quero continuar o judo no Algés -Dafundo que ficava lá ao pé e porque os meus treinadores [ da Casa do Benfica de Santarém] indicaram-me.

Deixar o Judo, mesmo indo para a faculdade, nunca foi uma opção…

Eu acho que o judo fazia parte de mim. Não havia como.

E é o judo que leva a melhor quando acaba o curso e acontece a grande decisão de se preparar para os Jogos Olímpicos?

Sim. Eu estava no ano de estágio, onde já dava aulas e tinha algumas disciplinas e senti que já não conseguia conciliar tudo: os treinos intensíssimos, as viagens e havia dias em que eu chegava ao treino e dizia ao meu mestre que não conseguia treinar porque estava exausto. Nessa altura, eu tinha tido resultados muito bons, mas não suficientemente bons para entrar para a equipa olímpica. Nós tínhamos na altura um apoio estatal que se chamava pré-pol - pré preparação olímpica- que hoje em dia é o que se chama o 'Projeto Olímpico' e era fundamental ter esse apoio para ter algumas expectativas de fazer boa figura nos Jogos Olímpicos. E eu fui para uma prova na Holanda, aí por volta de Março, Abril de 1999 e precisava de ganhar uma medalha, e fiquei em último lugar, ou seja, perdi o combate de acesso à medalha. E aquilo deixou-me bastante desiludido. Eu estava em overtraining, estava exausto e perdi mal, perdi com atleta muito abaixo do meu nível e da pior maneira que eu poderia imaginar, que é falta de combatividade, levámos castigos porque não estavamos a atacar. E aquilo mexeu comigo e comecei a questionar ‘ o que é que vou fazer da minha vida?’. Já não consigo conciliar isso tudo…

Mas ainda havia o Europeu?

Sim, sim. Ainda me passou pela cabeça, vou desistir, mas logo decidi que tinha de ser o ‘vai ou racha’. Fiz as contas dos rankings e percebi que tinha que ficar nos cinco primeiros do campeonato da Europa. Isso implicava chegar à meia-final. Era um campeonato em dois dias, então eu tinha que vencer quase todos, ou grande parte, dos combates do primeiro dia. E então eu fiz esse compromisso comigo próprio e foi uma coisa que, a partir daí, aprendi a gerir na minha vida, que é quando se quer muito uma coisa tem de se comprometer. E o compromisso tem de ser como se fosse uma aposta. Se eu ganhar, eu tenho direito a isto, se eu perder, eu tenho de dar isto.

E o que tinha de dar se perdesse?

Se eu não conseguisse esses resultados, eu ia desistir do judo e ia-me dedicar à minha profissão e ia fazer aquilo que a minha mãe me tinha sugerido; se eu ficasse entre os cinco primeiros, acabava-se o curso e ia-me dedicar 100% ao judo. Pronto, fui para a Bratislava com o meu treinador e o primeiro dia, correu muito bem. Ganhei os combates todos, venci um medalhado olímpico e cheguei à meia final. Eu fui-me deitar a dizer assim ‘já sou profissional’. E a final foi uma barreira importante para toda a equipa, porque nós nunca tínhamos ganhado um título europeu. E para mim, acima de tudo, foi olhar para o lado e dizer assim ‘ estou no meio dos pódios Olímpicos, portanto, também posso estar ali’. Então, voltei para casa e numa cachupada com a minha família e amigos, eu fiz novo compromisso que era dedicar-me a 100% ao judo e lutar por uma medalha nos Jogos Olímpicos. Eles ofereceram-me um cinto negro, muito manhoso, nem era de judo, mas com umas dedicatórias muito importantes, e começou-se a construir essa jornada, que eu acho que mais uma vez, foi muito importante porque toda a gente sabia o que era o objetivo final.

Dedicou-se inteiramente à preparação para os Jogos Olímpicos, já não deu aulas então?

Fui colocado numa escola em Leiria, a 150 quilômetros do meu clube, e fui ter uma reunião com o presidente da Federação e o meu treinador, e apresentámos problema. ‘Olha, o Nuno quer investir na sua carreira e quer treinar a 100%, e está colocado numa escola a 150 quilômetros do treino, portanto, precisamos da ajuda da Federação para desencadear os direitos de alta competição para que ele possa cumprir o seu programa.’ E na altura, a resposta da direção da Federação, por ignorância, porque não estavam habituados a este tipo de exigências, foi dizer-nos que isso ultrapassava o âmbito deles e que não podiam fazer nada. Eu costumo dizer que nós tínhamos uma geração muito boa, os meus colegas foram muito importantes para mim, foi através do Pedro Soares, da Filipa Cavalleri, do Michel Almeida, que eu me autoeduquei a ter esse grau de exigência e ter as coisas estão bem presentes. Só que eu acho que fiz uma coisa diferente deles, que fez toda a diferença. Eu fui o único que decidi fazer judo a tempo inteiro, todos eles tinham atividades paralelas. E isso permitiu-me treinar 24 horas por dia. Eu era muito disciplinado: treinava de manhã, depois ia para casa ou ficava no centro de estágios, almoçava, dormia a minha sesta e fazia outra coisa, porque eu tinha tempo, que era preparar os treinos. Eu estudava os meus adversários, eu escolhia quais eram os objetivos que eu queria para aquele treino.

Mas como é que atleta à época vivia só do judo? Era com o tal apoio do Estado?

Era com o paitrocínio e também com o apoio do Estado. O apoio do Estado, numa primeira fase, foi importante porque era uma bolsa olímpica que representava mais ou menos o que ganhava o professor de educação física. Depois, eu vivia no centro de estágios, não tinha despesas e, mais tarde, como eu fui colocado na função pública, consegui efetivamente ter condições de ser remunerado e não ter que estar a trabalhar. Era uma espécie de destacamento para me poder dedicar ao treino e à competição. E como logo no ano a seguir, eu fui medalhado olímpico, acabou por correr bem e a aposta foi certa, isso prolongou-se durante a minha carreira, eu continuei sempre vinculado à função pública. Mas quando eu tomei essa decisão, não tinha nenhuma garantia de subsistência. Depois como eu tive bons resultados, também recebi prémios monetários.

Chegamos então a 2000: primeira medalha olímpica para o judo. Que sabor é que teve? Teve sabor a ser a primeira para Portugal ou  foi mais sabor a concretização individual?

Foi um bocadinho de tudo, porque nós judocas tínhamos muito aquela sensação que a nossa modalidade não era reconhecida. No Algés, a natação e o basquete eram as grandes modalidades do clube, e nós é que tínhamos os resultados desportivos de elite, e sentíamo-nos um bocadinho à margem. No desporto nacional, era o futebol, o atletismo, o ciclismo, o hóquei em patins, e por aí adiante, e na altura, ninguém sabia o que era o judo. Eu sei que quando eu passei os jornalistas andaram atrás de toda a gente para saber como eram as regras do Judo. E as palavras que eu disse quando ganhei a medalha foi no coletivo porque para mim, obviamente que foi o momento da minha vida, até pela paixão e o sonho que eu tinha dos Jogos Olímpicos, mas o mais importante tinha sido Portugal, a nossa equipa, nós treinávamos juntos e um de nós tinha conseguido. E foi um sonho que vivemos, porque depois quando voltei de Sydney, tivemos consciência que judo passou a ser mediático, eu passei a ser mediático. E pronto, acho que foi o virar de página para o Judo.

Nuno delgado morde medalha
Nuno delgado morde medalha Nuno Delgado com a medalha de bronze conquistada nos Jogos Olímpicos de Sidney, em 2000 créditos: DR

Investiu-se mais no Judo depois disso? Investimento não só financeiro, mas de interesse também e de tornar mais visível o vosso trabalho…  

Eu acho que sim embora, para nossa tristeza, estes processos levam tempo e eu estava convencido que em dois, três, quatro anos, o mundo mudava porque havia esta situação, mas não mudou. Foi mudando. Em 2000 o judo apresentou-se à sociedade portuguesa, depois estagnou um bocadinho, e foram precisos mais alguns anos, já com a Telma Monteiro, quando o judo vai para o Benfica e depois para o Sporting, para ser mais visível. E olhando para trás, o judo neste momento está num patamar altíssimo, tanto que chegámos ao ponto de termos sido a única medalha da Missão Olímpica no Rio de Janeiro e de sermos realmente uma modalidade que os portugueses já seguem e que têm consciência daquilo que o judo pode ajudar as crianças e as pessoas que praticam. Eu acho que isso também era muito importante.

O que é que mudou no Judo da década de 2000 para agora?

Muita coisa mudou, tanto no judo como no desporto nacional. Nós, em 2000, tirando raras exceções, éramos amadores. Hoje em dia, a equipa olímpica e a maioria dos clubes, já podemos dizer que são semiprofissionais, não são todos profissionais em pleno, como o Pedro Pichardo ou como a Patrícia Mamona, mas as coisas já estão muito mais próximas do que era aquilo que nós ambicionávamos em 2000. Por exemplo, a multidisciplinariedade do treino eu já a tinha, em 2000, ou seja, tinha psicólogo, tinha nutricionista, tinha preparador físico, mas tinha porque eram os meus professores na universidade. O meu médico veio-me perguntar se eu já tinha feito exames médicos e se tomava vitaminas e essas coisas, porque estava a treinar em alto rendimento. E recomendou-me o professor Gomes Pereira, que mais tarde foi médico do Sporting e olímpico, e ele lá me fez exames e avaliação nutricional e eu estava com anemia. Eu fui o primeiro atleta a ter preparador físico individualizado, e não ser o nosso treinador a dar os treinos da parte física, conseguimos criar, mas não existia. O próprio centro de alto rendimento, que hoje é aquele complexo do Jamor, era uma salinha com um ginásio debaixo de umas escadas de uma bancada. Hoje, todos os clubes têm ginásio e têm essas infraestruturas.

Numa visão mais de atleta, qual é a grande diferença entre participar no projeto olímpico e no Campeonato da Europa, por exemplo?

É uma boa pergunta. O campeonato da Europa é uma competição, mas os Jogos Olímpicos é o maior evento do planeta e isso muda tudo. Não há nenhum evento desportivo no mundo onde todas as nações estejam juntas para provar que são as melhores. O estatuto olímpico, o ideal olímpico, o ser olímpico é algo muito importante para qualquer atleta. É uma competição onde as pessoas que atingem esse patamar, de certa forma, são pessoas que vão ficar imortais na História pelos seus feitos. É essa a origem dos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga. E depois, os Jogos Olímpicos acontecem de quatro em quatro anos, portanto há pessoas que não têm muitas oportunidades. E, por fim, os Jogos Olímpicos têm um sistema muito rigoroso de seleção. Só conseguir ser selecionado para ir aos Jogos Olímpicos é algo fantástico. As pessoas estão muito mais bem preparadas para os Jogos Olímpicos do que para o Campeonato do Mundo, por exemplo.

 

Os Jogos Olímpicos de 2004 foi o ponto final desta jornada. O que aconteceu? Houve erros ou foi só azar?

Azar não existe na alta competição. Eu não acredito nisso….

Mas partir o dedo no dia antes da competição, a treinar, não é azar?

Não! A sorte e o azar acontecem, mas também têm fatores. Eu estava com uma vida pessoal muito desequilibrada nesse período. A minha mãe estava muito doente, estava com uma depressão, estava internada e isso mexeu muito com o meu dia-a-dia; também me tinha separado da minha namorada o que também mexeu muito com a minha vida pessoal e depois começaram a aparecer as lesões. Foram sete lesões em menos de um ano. E eu continuava a mesma preparação que fiz para Sydney: acordava, tomava o pequeno-almoço, treinava… tudo igual. Mas a minha vida pessoal estava num caos. E nós na altura não demos atenção a isso, dedicámo-nos àquilo que sabíamos mexer. Só que o mais importante ali era a parte emocional. E posso dizer que me senti mesmo deprimido. Estava sempre lesionado, não conseguia treinar, não conseguia competir, e os meses a passarem…

 

Mas não ir aos Jogos Olímpicos não era opção?

Não era. Quando eu fiz a última lesão lá [na mão] aconselharam-me a não competir. Mas eu disse que não queria fazer isso porque era uma má memória para toda a vida, eu preferia morrer de pé. Ir ao tatame e deitar cá para fora tudo e dar o meu máximo. Se eu não estivesse participado, nem sequer era olímpico e eu acho que era uma sensação que eu não queria carregar. E pronto, eu lutei, fiz aquilo que pude na altura. E eu treinava muito, mesmo lesionado, treinava imenso com os fisioterapeutas, mas faltava o resto. Faltava descansar, ter a cabeça tranquila…

Nuno Delgado
Nuno Delgado Nuno Delgado deixou a competição em 2004 após falhar a medalha nos Jogos Olímpicos de Atenas créditos: DR

E esteve depois no momento da segunda medalha olímpica, da Telma Monteiro, como se dá essa oportunidade?

Em 2015, a Federação falou comigo e pediu-me para liderar a equipa técnica para os Jogos do Rio que seriam em 2016. Tinha saído o meu colega Michel Almeida e era preciso pôr ordem na casa e eles achavam, com o meu perfil e experiência, que era a pessoa que podia fazê-lo. Eu fiz algumas exigências. Antigamente todos os treinadores estavam ao mesmo nível e cada um era dono da sua seleção e o que eu pedi foi para haver um responsável por todas as seleções, que seria eu. E eles aceitaram. Preparámos um projeto muito ambicioso. Já se tinham passado 16 anos e ainda não se tinha voltado a conquistar uma medalha olímpica e nós tínhamos uma equipa fantástica. Apesar da nossa grande esperança, a Telma Monteiro, ter tido uma lesão no joelho, e foi inclusivamente operada, conseguimos pô-la em condições de fazer aquilo que nunca tinha sido feito, que era uma medalha olímpica feminina. Infelizmente, foi a única medalha olímpica naqueles Jogos, mas para nós aquela medalha valeu ouro, porque posicionou outra vez o judo, e acho que foi aí então que nós sentimos que o judo ficou num patamar elevado no desporto português.

Porque é que diz que foi um momento alto na sua carreira?

Porque mostrei que podíamos mudar e que precisávamos mudar. E, por outro lado, cumpri o meu papel no alto rendimento, que foi dar a Portugal mais uma medalha olímpica, que foi conquistada com muito brilhantismo pela Telma. Aquilo que eu acho que proporcionei foram as condições que eu sentia que eram necessárias para ela poder fazer aquilo que sabia fazer bem, porque eu não tive que treinar a Telma, nem quis treinar a Telma. Aquilo que eu fiz com ela foi estruturar um plano. E uma das grandes decisões que nós tomámos foi tirá-la da Aldeia Olímpica, porque achámos que, até devido à lesão e toda a pressão que estava a sentir, ficar no apartamento à distância de cinco minutos dos colegas não ia ser bom, estarem constantemente a perguntar ‘ como é que te estás a sentir?’, isso podia provocar ansiedade e stress. Depois, também proporcionei aquilo que em 2012, em Londres, sentia que não estava presente e que eu tinha tido em Sydney que era o psicólogo, o treinador pessoal. O facto de eu me ter desvinculado do tapete permitiu-me ter essa visão mais abrangedora e proteger os meus colegas, os meus treinadores, para que eles fizessem o trabalho deles e estivessem focados em lidar com os atletas. Eu acho que isso foi muito importante, porque quando chegou a hora da verdade, eu senti que a Telma tinha tudo o que precisava.

A judoca portuguesa Telma Monteiro recebeu o bronze na categoria de -57kg dos Jogos Olímpicos Rio2016 INÁCIO ROSA/LUSA

O Nuno nunca pensou dentro da Escola de Judo Nuno Delgado preparar atletas para os Olímpicos?

Isso foi uma dúvida que pairou durante muito tempo, porque toda a gente estava na expectativa que a Escola de Judo Nuno Delegado fosse a melhor escola desportiva, de competição, de medalhas olímpicas e tudo o mais. A melhor geração de Sub21 foi feita aqui nesta casa. Neste momento, a melhor atleta dessa geração é a Taís Pina. Taís Pina vem de projeto social com a fundação Glubenkian e a fundação EDP, nesta casa, ela treinou aqui até 2021. E, portanto, fizemos um bocado esse caminho, mas não é essa a nossa praia. Não é aí que temos que estar! Nós vamos formar atletas até os 14 anos. E a partir daí vamos deixá-los voar. Porque eles consomem muitos recursos que são necessários para formar campeões para a vida, mas na escola e não no Alto Rendimento.

Muito bem. Última pergunta, que expectativas tem para o judo nos Jogos Olímpicos de Paris?

O judo tem contribuído nas últimas edições com uma medalha olímpica e eu gostava que se mantivesse essa tradição e acho que há todas as condições para, mas gostava que acontecessem duas coisas: uma final olímpica do judo ou duas medalhas. Faltam menos de 100 dias, mais ou menos três meses, e é nesta altura que se deve começar a refletir. Era importante ganharmos um título olímpico. Não há nenhuma modalidade, com exceção do atletismo, que tenha ganhado o título olímpico e se isso acontecesse para o Judo era muito especial.

Apostas?

Tenho duas apostas. As minhas duas apostas são, em primeiro lugar, obviamente, o Jorge Fonseca, por várias razões: é uma pessoa que eu gosto muito, é uma pessoa que merece pelo talento extraordinário, passou uma vida complexa com cancro pelo meio; e por outro lado, tem um treinador que é meu amigo, o Pedro Soares, que foi um dos meus mentores e acho que era importante para os dois que esse sonho acontecesse, porque eles investiram muito nisso. A outra aposta que eu tenho, infelizmente não é a Telma Monteiro, porque a Telma tem outro objetivo que é chegar aos Jogos e ter esta longevidade que tem conseguido ter, mas é a Catarina Costa. Eu vi-a nascer para o judo em Edimburgo, numa primeira prova em que a levámos e em que ela venceu. Tem-se mostrado uma atleta muito sólida. Já foi disputar uma medalha nos últimos Jogos e era bom que ela conseguisse chegar ao pódio, porque também merece muito.

Ok, obrigada, Nuno.

Obrigado, eu!

Nuno Delgado na escola
Nuno Delgado na escola O ex-judoca no Dojo Nuno Delgado créditos: DR

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