No dia em que Katmandu e Jacarandá chegavam à sua nova casa, na Herdade das Romeiras, Mértola, "estávamos a sair do jipe e o coordenador do projeto LIFE+Iberlince, Miguel Ángel Simón, disse-me: Miguel, daqui a dez anos, é disto que te vais lembrar, de todo o teu tempo como secretário de Estado. E tinha razão. Isto foi um feito único à escala mundial e ainda hoje é o que me faz vibrar, quando recordo os tempos de governação".
Engenheiro agrícola de formação, Miguel era então secretário de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza. O dia era o 16 de dezembro de 2014 e o sol, a compensar o adiamento de seis meses a que uma mortandade anormal de coelhos obrigara, apareceu para saudar o programa que pretendia tentar recuperar uma espécie considerada extinta no país. Os dois linces ibéricos, criados em cativeiro em Espanha, eram libertados na natureza, no cercado montado dentro da propriedade de José Neto Valente, onde havia coelhos de sobra — o alimento de eleição da espécie — e suficiente resguardo dos maiores perigos (a par da falta de comida, os atropelamentos e a destruição do habitat), que lhe haviam ditado a extinção.
Foi um dia "mágico", em que o otimismo estava inflamado pela mobilização geral. "Todos tinham de estar de acordo, era a única forma de isto funcionar. Foi o homem que causou a extinção do lince ibérico e nessa altura, extraordinariamente, juntou-se amigos improváveis que garantiram a reversão a que agora assistimos", conta ao SAPO Miguel de Castro Neto. Dez anos depois, quase 300 descendentes de Katmandu e Jacarandá passeiam livres pela natureza em Portugal. Na Península Ibérica, a população destes felinos carnívoros outrora considerados em "pré-extinção" (chegaram a estar reduzidos a pouco mais de uma centena de exemplares) atinge hoje os 2.021 animais a viver em liberdade.
Na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) como espécie Criticamente em Perigo até 2015, devido à sua reduzida e fragmentada distribuição, explica a Liga para a Proteção da Natureza, o lince ibérico é agora apenas considerado "vulnerável", havendo em Portugal registo de 291 animais, distribuídos por um território que se estende entre os concelhos de Serpa e de Tavira.
O resultado deu trabalho, muito trabalho. E obrigou a cuidados excêntricos. "Ainda me lembro de andarmos nos campos, literalmente a contar caganitas de coelho para vermos se havia condições para libertar os linces", ri-se o antigo governante, explicando como se processavam os "census dos coelhos". "Houve muitas ações de educação e sensibilização das populações, dos miúdos aos mais velhos. Até criámos um sinal de trânsito para o lince, para garantir que as estradas deixavam de ser um fator de risco", destaca.
"O mais extraordinário para mim foi a forma como múltiplos interessados se envolveram, desde a parceria ibérica aqui sediada no Centro de Silves a um conjunto de atores que não têm tanta visibilidade e que muitos não suspeitariam que tiveram um papel fundamental neste resultado, como os proprietários e gestores de caça", conta ao SAPO Miguel de Castro Neto. Entusiasma-se a recordar esses dias em que Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e caçadores trabalhavam lado a lado na recuperação do habitat para assegurar as condições ideais para o regresso do lince ibérico. Lembra-se, como se tivesse acabado de acontecer, de todos os amigos improváveis, fosse a pastelaria que passou a exibir nas montras as "línguas de lince", os artesãos que se inspiraram no felino para fabricar recuerdos de Mértola ou as iniciativas dos próprios gestores cinegéticos que, vendo crias a aparecer, por elas zelavam sem interferir no seu desenvolvimento e comportamentos, à distância.
"São animais selvagens e o objetivo era que não tivessem contacto com humanos, de forma que cumprissem adequadamente a sua reintegração na natureza", explica o hoje diretor da NOVA IMS, que nunca deixou de ter um olho na progressão do projeto. "Houve proprietários e gestores cinegéticos espanhóis que nos disseram que as suas propriedades de caça até se tinham valorizado, por causa da presença do lince." Acontece que o felino, por ser extremamente territorial, expulsa as raposas, que atacam não apenas a população de coelhos mas também outros pequenos animais, incluindo de criação, como as galinhas.
Um projeto de sucesso
E replicar a solução para recuperar espécies especialmente ameaçadas é uma ambição? É possível copiar esta história com final feliz? Miguel lembra-se imediatamente do lobo, igualmente ameaçado e que podia responder bem a um programa semelhante. Mas admite que não é tão simples. "Enquanto o alimento natural do lince ibérico são os coelhos, os lobos já atacam ovelhas, bezerros... Mas a verdade é que estamos a perder diversidade de fauna e flora a grande velocidade e é preciso travar isso." Realça depois o lado positivo: "É um desafio, mas é bopm vivermos em tempos de muito maior consciencialização para a sustentabilidade. E temos muito mais métodos disponíveis para evitar perder essa riqueza."
No caso dos linces, a inovação do programa foi a 360 graus. Ao ponto de, no Jardim Zoológico, se criar um espaço dedicado aos linces, para onde migraram os exemplares mais velhos ou com problemas de consanguinidade — sobretudo nas primeiras linhagens, o excesso de ADN partilhado provocava problemas de saúde, como a epilepsia. "Mas mesmo hoje, eles são todos primos, mais ou menos afastados", repara Miguel de Castro Neto.
"Favorecer a conectividade entre núcleos de populações de linces e zonas de futura expansão é fundamental para que possam procriar com exemplares de outras populações. O que importa não é apenas ter muitos animais, mas que os territórios que o lince volta a ocupar se espalhem e eles se desloquem; é essencial que haja troca genética para a espécie ser viável", concluía, em entrevista ao El Independiente, o diretor do projeto LIFE+Iberlince.