É com o seu quarto livro, “Sodomita”, um romance histórico que vai até ao século XVII, que o escritor e diplomata brasileiro Alexandre Vidal Porto chega pela primeira vez às livrarias portuguesas, numa edição da Tinta da China. Com este romance o autor acaba de ser premiado com o prestigiado prémio Machado de Assis 2024. Mas sobre prémios afirma neste podcast:
“Não escrevo para agradar, não escrevo para ganhar dinheiro, não escrevo para a vaidade. O ego é ridículo e dá má literatura. Se eu tenho que receber uma distinção, eu morro de vergonha. Eu morro de vergonha porque eu não me sinto muito digno, sabe? Eu tenho complexo de impostor.”
A sua mais recente obra é uma sátira à discriminação por conta da orientação sexual que parte de uma investigação histórica e de personagens reais.
A partir desses registos, Alexandre Vidal Porto completa por via da ficção as brechas que ficaram por contar e narra a saga de Luiz Delgado, violeiro português natural de Évora, que chegou em 1669 à cidade de Salvador, no Brasil, degredado por “sodomia” — um código para homossexualidade, um dos crimes mais hediondos no Portugal inquisitorial do século XVII.
Em território baiano, roído por uma culpa que o ultrapassa, Delgado reinventa‑se como comerciante, trabalha muito, assume um casamento cordial de fachada, mas não deixa de se entregar a deleites carnais e a algumas paixões sinceras com rapazes que cruzam o seu caminho, à medida que o factual se vai misturando com efabulação.
Certo é que “Sodomita” não é apenas história, nem apenas um romance, não fala apenas em português arcaico nem apenas na oralidade de hoje, e nunca fica preso numa época antiga porque permanentemente nos coloca perante questões até hoje relevantes — preconceito, opressão, prazer, desejo e o direito de existirmos como somos. Um romance que nos leva ao século XVII para nos confrontar com os preconceitos de hoje.
Um romance que se centra "num dos capítulos mais feios da História", o da inquisição, e descreve as consequências de um fanatismo religioso que hoje está novamente mais presente e pulsante, mostrando como as conquistas sociais e políticas são muito débeis e podem voltar para trás, até aos tempos deste livro que dá conta de quão perversos e maldosos podem ser os homens e as mulheres em nome da fé, da moral, do preconceito e da ignorância.
O inferno é na terra e tantas vezes somos nós quando colocamos na fogueira o outro em nome de ficções e crenças religiosas.
O escritor Itamar Vieira Júnior, Prémio Leya de 2018 e vencedor do Prémio Oceanos de 2020, chegou a afirmar sobre este romance, o seguinte:
“Ao recuperar a história de Luiz Delgado, Vidal Porto restitui ao personagem a humanidade suprimida pelos registros históricos. Uma breve crônica sobre o que é inviolável na existência humana: o direito ao corpo, à vida e ao desejo.”
Para Alexandre Vidal Porto, "o preço da liberdade é a eterna vigilância", sem esquecer que há mais de 70 países no mundo em que os atos homossexuais são criminalizados, alguns com pena de morte, exatamente o tratamento jurídico que existia no século XVII.
"Sodomita" foi escrito entre 2021 e 2022, em período de pandemia, impulsionado pelo “bolsonarismo”. É um livro de resistência e memória, para que não se esqueça o mal feito a tantas minorias ao longo dos tempos.
Sobre o autor importa dizer que além de escritor, é diplomata. Nasceu em São Paulo e viveu em Fortaleza, Brasília, Nova Iorque, Santiago, Washington, Cidade do México, Tóquio e Frankfurt. Atualmente vive em Amesterdão com o marido, e trabalha no consulado do Brasil.
Mestre em Direito por Harvard, foi colunista do jornal Folha de S. Paulo e além de Sodomita é autor de outros 3 romances “Matias na cidade” (2005), “Sergio Y. vai à América” (2014, vencedor do Prémio Paraná de Literatura) e o já referido “Cloro” (2018, finalista do prémio Jabuti).
Por conta da sua profissão, tem vivido longos períodos como expatriado, em sociedades das quais não faz parte. E com essa experiência acostumou-se a ser o estrangeiro, o provisório, o que vai embora três anos depois. E a tirar prazer disso. Mas tem dificuldade com os rompimentos pessoais que surgem dessas mudanças, por ter um real interesse pelo humano, pelo outro.
Alexandre Vidal Porto dá conta que gosta de relacionamentos longos. Está casado há 21 anos. Com meia dúzia de pessoas tem amizades de mais de quarenta anos. Uma fortuna, em tempos frenéticos de consumismo e egoísmo em que nada dura, depois do prazo legal da garantia. Por vezes, nem a amizade.
Alexandre considera-se um “tímido espalhafatoso”. Diz que parece ser mais aberto do que é. Uma ferramenta social que desenvolveu enquanto diplomata? Alexandre responde neste podcast.
O escritor conta que tem preocupações éticas na sua vida cotidiana, procura ter empatia e pensar na morte como coroação da vida.
E enquanto escritor compõe as suas histórias e seus personagens com base num exercício de autodescoberta e de relação com o outro. Nos seus romances está sempre presente, pulsante, questionado o tema da sexualidade e os seus desejos, armários, descobertas, preconceitos, perseguições e rosários de culpas.
Como acontecem as suas histórias? Há sempre um momento em que as personagens do seu livro tomam a sua mão e lhe revelam o caminho que tem de seguir? É-lhe perguntado neste episódip.
Em casa, com o seu marido, Alexandre Vidal Porto fala inglês. Tem passado longos períodos cercado de línguas estrangeiras, como o alemão, o japonês ou húngaro. Uma das sensações mais gratificantes ao escrever é cercar-se da língua materna, na qual nenhum significado lhe escapa. Porque a língua portuguesa é um ambiente de muito conforto para si, que busca sempre que pode.
A literatura pode ser uma importante ajuda nessa vigilância, recordando através da ficção, o que se passou ou passa no mundo real? É precisamente com esta pergunta que arranca este podcast.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Nuno Fox. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.
A segunda parte deste episódio será lançada na manhã deste sábado. Boas escutas!