Uma França Insubmissa exultante, mas com forças de bloqueio para chegar ao Matignon. Uma extrema-direita derrotada, mas a apostar numa “vitória final” que continua a agendar para o Eliseu em 2027. E um Presidente a sobreviver, mas com um primeiro-ministro que se demite já e deixa claro que não teria dissolvido a Assembleia Nacional. Os franceses agremiados para um ‘apéro’ tardio não esperavam que o menu da noite eleitoral deste domingo fugisse tanto das propostas ‘à la carte’. Mas afastado, pelo menos para já, o espectro da extrema-direita na chefia do governo, mantém-se o da ingovernabilidade.

Jean-Luc Mélenchon, fundador da França Insubmissa (LFI), foi lesto a clamar vitória e a apontar a mira a Emmanuel Macron. Com a Nova Frente Popular (NFP, coligação de esquerda que junta o seu partido a socialistas, ecologistas e comunistas) a vencer as eleições legislativas antecipadas, a ‘bête noire’ da esquerda francesa declarou que “o Presidente tem o dever de chamar a NFP para governar”, convidando Macron a “curvar-se e admitir esta derrota sem tentar, de forma alguma, contorná-la”. Em rigor, o chefe de Estado, tendo sido derrotado, escapou a uma derrota estrondosa – afinal, o bloco presidencial Juntos (Ensemble, que inclui o partido Renascimento, de Macron) ficou em segundo lugar. O Reagrupamento Nacional (RN, de extrema-direita) é que se estatelou, caindo da primeira posição do último domingo para o último lugar do pódio nesta segunda volta.

Jordan Bardella, o delfim de Marine Le Pen e presidente do RN, também não tardou a reagir às primeiras projeções: “Os acordos eleitorais estão a atirar a França para os braços da extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon”. Ainda se congratulou com “o mais importante” avanço do RN “em toda a sua história” – de resto, coligações à parte, o partido é o mais representado no novo figurino parlamentar –, mas lamentou “a aliança da desonra”, referindo-se à frente republicana forjada entre a coligação de esquerda e o bloco macronista nos últimos dias para impedir que o RN chegasse ao poder. Le Pen, que não tira os olhos da Presidência da República, viria a garantir que a vitória ficou “apenas adiada”. “Se não fosse esta barragem contranatura, teríamos chegado à maioria absoluta”, disse a líder de facto.

Macron, de quem pouco se tem ouvido desde o anúncio-surpresa da dissolução da Assembleia Nacional, a 9 de junho, após uma pesada derrota nas europeias, continua remetido ao silêncio. Mas os recados vão chegando. A sua ‘entourage’ apelou à “prudência” na leitura das projeções, garantiu que “o bloco central não está morto” e fez saber que o inquilino do Eliseu vai esperar pela nova redistribuição das peças no puzzle parlamentar para “tomar as decisões necessárias”. E o secretário-geral do seu Renascimento afirmou que a NFP “não pode governar a França” e que, “contrariamente ao que alguns previam, o bloco central republicano moderado continua de pé”.

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A entrega das chaves do Matignon, que Gabriel Attal pretende deixar vago a partir desta segunda-feira, está dependente de um nome que, com os dados atuais, virá de uma esquerda unida (cuja única cola parecia ser barrar a extrema-direita) ou de uma aliança ao centro.

Dos 546 candidatos que representam a NFP, 229 são apoiados pela LFI, 175 pelos socialistas, 92 pelos ecologistas e 50 pelos comunistas. Apesar de esta distribuição ser mais favorável ao partido de Mélenchon, os socialistas ganharam um capital reforçado com a bem-sucedida campanha do socialista Raphaël Glucksmann nas europeias. Ao contrário do RN, que via em Bardella o próximo primeiro-ministro, no campo da esquerda, unida por uma causa e dividida em quase tudo o resto, não há nomes óbvios. Mélenchon mostrou-se disponível para avançar, mas disse que não imporia o seu nome. O antigo candidato presidencial é uma figura muito divisiva mesmo dentro da esquerda, com acusações de antissemitismo, proximidades à Rússia, entre outras polémicas.

Glucksmann declarou que nunca aceitaria Mélenchon como primeiro-ministro – e não foi o único a fazê-lo. Nesta noite de domingo, apesar do bom resultado da LFI, que, em teoria, volta a dar ao seu fundador um novo capital, reforçou-se a barragem contra ele. Mas os socialistas e os ecologistas dão sinais de unidade: o antigo Presidente François Hollande defendeu que a esquerda deve mostrar responsabilidade e procurar pacificar o país, enquanto a líder dos Verdes assegurou que “as decisões no seio da NFP” para a escolha de um nome a apresentar a Macron serão tomadas “de forma calma, pacífica e determinada”. Noite fora, na televisão francesa, anunciaria uma reunião já na segunda-feira, onde as esquerdas começarão à procura de uma solução para o cenário político número um: levar um nome da coligação a Macron, para formar governo.

Se as negociações não forem conclusivas e a LFI acabar fora da equação, um outro cenário potencialmente governável resultaria, pois, da soma dos deputados do bloco macronista com os dos socialistas e ecologistas. Douglas Yates, professor da American Graduate School em Paris, considera que “Mélenchon não é capaz de ultrapassar a sua má imprensa (antissemitismo, egoísmo), pelo que a esquerda terá de se organizar com os macronistas para formar uma maioria”. Algo que passaria por ter “os socialistas e os ecologistas a migrarem para o centro”, o mesmo acontecendo com os Republicanos (LR), sugere o académico que, em conversa com o Expresso, não resistiu a contar “uma ideia engraçada” que ouviu de um ‘pizzaiolo’: “Attal poderia manter-se no cargo porque não haveria maioria para o censurar”.

Acontece que, pelo meio, abriu-se uma crise no LR, partido gaullista de Nicolas Sarkozy e antes, sob outra designação, de Jacques Chirac. Dois dias após o anúncio das eleições antecipadas, o presidente dos Republicanos, Éric Ciotti, anunciou uma aliança com o RN para as legislativas. Ato contínuo, os barões do partido decidiram destituí-lo da liderança, uma decisão contestada por Ciotti em tribunal, que suspendeu a sua destituição. Portanto, ainda há esta clarificação a fazer se os Republicanos não alinhados com o partido de Bardella contarem para esta solução governativa.

Georgios Samaras, professor assistente de Políticas Públicas no King’s College de Londres, insiste que “a esquerda tem agora uma hipótese de formar governo, dependendo da forma como Macron e os seus aliados lidarem com esta confusão”. Segundo o académico, “Macron está sob pressão crescente e, para salvar a sua presidência, terá de fazer algumas concessões sérias”. Samaras adianta ao Expresso que, “mais uma vez, a influência de Le Pen foi grosseiramente sobrestimada”, não restando à esquerda senão “aproveitar o momento e mostrar à França que está a falar a sério”, sob pena de “travar” e “o centro continuar a confundir-se com a extrema-direita”.

Ao olhar para os resultados, Jeanne Marlier, doutoranda francesa no Departamento de Governo da Universidade de Viena, conclui que “claramente a estratégia da frente republicana [contra a extrema-direita] foi bem-sucedida”, tendo sido “sobretudo conduzida por eleitores de esquerda”. Em conversa com o Expresso, assinala ser “improvável” que se chegue a uma maioria com uma coligação entre o bloco macronista, PS e LR. Já a NFP poderá tentar “convencer alguns deputados macronistas mais à esquerda para alcançar uma maioria”. Mas o cenário mais estável, defende, passaria por “um acordo de coligação capaz de garantir uma maioria absoluta”, se não mesmo “um governo com os três blocos representados” ou até “um governo de especialistas”. Em qualquer dos casos, adverte Marlier, “o processo irá provavelmente levar algum tempo”.

O facto é que nunca a Assembleia Nacional francesa esteve tão dividida como agora – o que obriga qualquer acordo para formar maiorias a juntar sete partidos, se se excluir o de Le Pen. E nunca antes o partido mais votado foi, aliás, o da direita radical.

Mesmo de fora, a partir da sua bancada reforçada, a extrema-direita estará a apontar a instabilidade em que Macron e os seus “acordos perigosos” mergulharam o país, capitalizando nos próximos três anos. Em 2027 há presidenciais e duas certezas: Macron não se pode recandidatar, mas Le Pen será candidata e, dependendo do que acontecer até lá, quem sabe, ambicionar aceder ao poder pela porta grande do Eliseu.