A corrida às presidenciais norte-americanas está a chegar a um ponto crítico, em que ambas as campanhas, de Kamala Harris e de Donald Trump, procuram segurar as ondas de apoio pós-convenções até ao primeiro debate entre os dois candidatos, agendado para 10 de setembro. Um assunto que promete trazer uma discussão acesa e divisiva é o direito ao aborto nos Estados Unidos que, depois da decisão do Supremo Tribunal em revogar o processo ‘Roe v. Wade’ em junho de 2022, passou a ser o tema sobre o qual muitos eleitores tornaram o seu voto dependente.

A decisão sobre o processo ‘Roe v. Wade’ motivou centenas de petições e de protestos por todo o país, de várias organizações e grupos de cidadãos, preocupados em garantir e proteger o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG), de forma a que o Supremo Tribunal não volte a interferir com os direitos reprodutivos das mulheres norte-americanas. Em dez estados, o aborto não só será um tema presente na mente de milhões de eleitores, mas vai mesmo a votos como um direito constitucional, através de referendos para emendas constitucionais.

Dois dos estados que vão colocar o direito ao aborto no boletim de voto são os ‘swing states’ do Arizona e do Nevada, dois estados decisivos para a eleição presidencial do próximo dia 5 de novembro. Três são controlados por democratas (Colorado, Maryland e Nova Iorque) e seis por republicanos (Florida, Missouri, Montana, Nebraska e Dakota do Sul). A recolha de assinaturas de petições foi chumbada pelas autoridades republicanas locais no Arkansas, o único estado onde a luta por referendos regionais à IVG não teve sucesso.

Dos mais democratas aos mais republicanos, organizações tentam proteger aborto legal nas constituições

No Arizona, o agregador de sondagens do site FiveThirtyEight dá uma vantagem macérrima de 0,2% de Harris (45,6%) sobre Trump (45,4%), dentro da margem de erro. O estado, atualmente controlado por republicanos, é relevante para o Colégio Eleitoral e para as contas finais das presidenciais, e as preocupações acrescidas dos democratas sobre o aborto podem ser preponderantes. Para já, a lei no Arizona permite a interrupção voluntária da gravidez até à 15.ª semana, e não permite que o prazo seja estendido em casos de violação ou incesto.

Aqui, a emenda constitucional proposta no boletim vai sugerir a criação do “direito fundamental” ao aborto até à 24.ª semana de gestação, considerada pelas autoridades de saúde norte-americanas como o ponto de “viabilidade fetal”. Depois desta semana, o aborto passaria a ser permitido em casos de risco de saúde para a pessoa grávida.

No outro estado classificado como “swing state”, no Nevada (onde os democratas controlam os órgãos locais), a IVG já é legal até às 24 semanas, mas organizações de direitos das mulheres conseguiram criar uma emenda constitucional para ratificar o direito na constituição estatal, para precaver qualquer ataque à prática no futuro.

Os restantes três estados democratas - Colorado, Maryland e Nova Iorque - têm propostas semelhantes, com grandes hipóteses de serem aprovadas. Nos três locais, o aborto já é uma prática legal, pelo que o objetivo é proteger e expandir a interrupção voluntária da gravidez como um direito. A moção no Colorado, citada pela NBC News, exige que “o direito ao aborto seja reconhecido” e que “o governo não possa negar, impedir, discriminar ou discriminar contra a prática desse direito”.

A Flórida tem uma das emendas mais mediáticas, porque é nela que votará o ex-Presidente dos Estados Unidos, que reside na soalheira região no sudeste do país. O estado liderado por Ron DeSantis quer restringir o aborto legal até às seis semanas - um ponto em que muitas mulheres nem sequer se apercebem que estão grávidas. A proposta que será votada também aponta para a extensão do prazo até às 24 semanas, incluindo exceções para casos que impliquem “a saúde do paciente, tal como determinado pelo profissional de saúde”.

Nos restantes seis estados republicanos, a luta por garantir o direito legal e constitucional ao aborto será mais difícil. E, nestes estados mais conservadores, alguns esforços e referendos parecem tentar convencer um eleitorado mais republicano através de propostas abertas ao compromisso.

No Missouri, onde a prática é ilegal - seja qual for o prazo e mesmo em situações de violação ou incesto, e apenas abrindo exceções para casos de emergência médica para a grávida -, a emenda avançada pretende legalizar e proteger o aborto até ao prazo de viabilidade fetal, mas abre a porta a que as autoridades estatais limitem os direitos reprodutivos em circunstâncias “limitadas”, para “melhorar e assegurar a saúde da pessoa que procura cuidados de saúde”, desde que “não infrinja a capacidade autónoma de decisão da pessoa”. O Dakota do Sul, onde a lei também só permite a IVG legal em casos de risco de vida para a mãe, os proponentes pretendem que o direito à IVG seja certificado na constituição até ao primeiro semestre de gravidez; depois desse prazo, só caso seja necessário para “preservar a saúde e vida” da mulher.

Há ainda um estado com duas propostas diferentes, o Nebraska, o que poderá complicar um pouco a ida às urnas em novembro. Atualmente, a região apenas permite o direito ao aborto até às 12 semanas, exceto em casos de violação, incesto ou de risco de vida para a grávida.

Um grupo pró-aborto avançou com a moção “Proteger o Direito ao Aborto”, que exige que a prática seja ratificada na constituição estatal até às 24 semanas. A segunda, “Proteger Mulheres e Crianças”, pede antes que o aborto seja limitado após o primeiro trimestre. Enquanto que a primeira pode expandir o direito em vigor, a segunda procura praticamente proteger constitucionalmente as limitações já em vigor.

Posições dúbias de Trump reforçam vantagem de Harris

Durante o fim de semana, Donald Trump voltou a ziguezaguear em torno da questão. O ex-Presidente tem procurado, sem grande sucesso, conciliar o apoio dos republicanos anti-aborto, que representam a esmagadora maioria da sua base, com uma posição frequentemente ambivalente - Trump tanto diz que o assunto deve ser remetido para os estados, como diz que certas leis em estados republicanos são demasiado restritivas.

O líder conservador continua a congratular-se por ser o responsável pela viragem ideológica à direita no Supremo Tribunal, nomeando três juízes conservadores durante o seu mandato. Mas estas incertezas sobre o posicionamento de Trump em relação ao aborto, e as decisões passadas. só têm contribuído para um aumento de confiança no Partido Democrata: apesar de a economia continuar a ser o tema mais importante para os eleitores para esta eleição, a relevância dos direitos reprodutivos aumentou desde a desistência de Joe Biden.

Segundo uma sondagem do jornal "The New York Times"/Sienna College realizada em agosto, a percentagem de eleitores que consideram o aborto o principal tema destas eleições presidenciais aumentou 3% desde agosto, quando Joe Biden ainda era candidato e Kamala Harris estava longe da corrida à Casa Branca. Entre o eleitorado feminino, a importância dos direitos reprodutivos no voto final saltou de 17% para 22%.

Um dos argumentos feitos em 2022 pelos progressistas, após a decisão do Supremo Tribunal, foi de que o país já tinha evoluído e que o aborto estava figurado na lei há quase cinco décadas, pelo que a grande maioria da população era, de facto, a favor de alguma forma de interrupção da gravidez. Segundo dados do Pew Research Center de maio deste ano, cerca de 63% dos norte-americanos é a favor do direito ao aborto legal em praticamente todas as situações; já um estudo recorrente da Gallup sobre o assunto aponta que apenas 12% do país opõem-se a todas as formas de aborto, enquanto que 50% aceita o aborto “legal apenas sob certas circunstâncias”.

E, se mais mulheres assumem que o aborto é o assunto que mais importa para o seu voto, o apoio das eleitoras para Kamala Harris também aumentou desde a convenção. A sondagem da ABC/Ipsos divulgada esta segunda-feira mostra que, antes da Convenção Nacional Democrata - da qual saiu como a candidata oficial dos democratas à Presidência -, a vice-presidente tinha uma vantagem de 51-45 entre mulheres, e essa vantagem aumentou para 54-41 depois da convenção.

Entre Harris e Trump, a maioria dos eleitores registados também confia mais na democrata para ‘gerir’ o assunto, com 47% entre os inquiridos contra 31% do republicano. O New York Times aponta que, entre comunidades de minorias étnicas, especialmente eleitores negros e latinos, a vantagem de Harris em questões sobre como lidaria com o aborto chega aos 30%.