Uma nova análise genética, realizada por uma equipa internacional de cientistas, ajudou a pôr fim a um mito com 200 anos em torno de Kaspar Hauser, cuja identidade se tornou um dos grandes mistérios por desvendar da história popular alemã. O estudo foi publicado na revista iScience.
Num dia de 1828, Kaspar Hauser apareceu "do nada" na cidade que é hoje Nuremberga quando tinha cerca de 16 anos. Foi encontrado a vaguear pela praça da cidade sem qualquer identificação e afirmava ter passado a vida em cativeiro, numa masmorra, cuidado por um homem misterioso que nunca viu. Incapaz de falar ou escrever, trazia consigo uma carta anónima que declarava que tinha sido mantido em completo isolamento desde bebé.
A sua aparição tornou-o alvo de grande curiosidade e rapidamente surgiram histórias fantásticas que o associavam à família real de Baden, na altura um Estado soberano no sudoeste da Alemanha. Embora não houvesse provas para sustentar esta teoria, os rumores persistiram e Hauser foi “adotado” pela alta sociedade, transformando-se numa verdadeira celebridade.
A "teoria do Príncipe"
A teoria da conspiração dizia que Hauser era filho do Grão-Duque Carl, que tinha sido raptado e trocado por outro bebé, que teria morrido poucas semanas após o nascimento. Segundo esta teoria, Hauser seria o verdadeiro herdeiro do trono e o rapto teria alterado a linha sucessória da Casa de Baden.
A sua morte inexplicável causada por um ferimento de faca alimentou ainda mais a teoria do seu suposto nascimento real. Morreu em 1833 sem se saber quem era.
Vários historiadores têm debatido a identidade de Hauser ao longo dos séculos e, com o avanço da tecnologia de análise de ADN, no final do século XX cientistas uniram esforços para tentar resolver o enigma.
No entanto, múltiplas análises de ADN realizadas nas últimas três décadas em amostras de cabelo e sangue retiradas das roupas de Hauser deram resultados contraditórios. As dúvidas sobre a autenticidade das roupas e a possibilidade de contaminação durante os procedimentos museológicos também não ajudaram a esclarecer a situação.
Na primeira década de 2000, uma nova investigação independente utilizou técnicas mais modernas, mas os resultados continuaram ambíguos.
Novos métodos forenses
Mais recentemente, uma equipa de cientistas liderada por Turi King, diretora do Centro Milner para a Evolução da Universidade de Bath e conhecida pelo seu trabalho na identificação dos restos mortais do rei Ricardo III, utilizou métodos forenses inovadores para analisar fragmentos de ADN antigo extremamente pequenos.
Com estas novas técnicas, foi possível examinar individualmente fios de cabelo, em vez de agrupar amostras, o que permitiu obter sequências de ADN mais precisas. Compararam também os novos resultados com amostras de sangue extraídas das roupas de Hauser, expostas no museu Kaspar Hauser.
A equipa concentrou-se no ADN mitocondrial (ADNmt), que é transmitido exclusivamente pela linha materna, e conseguiu provar, de forma conclusiva, que o ADNmt de Hauser não correspondia ao dos membros da Casa de Baden.
“Após a morte, o ADN degrada-se progressivamente em fragmentos cada vez mais pequenos, até que já não é possível sequenciá-lo. As técnicas disponíveis nas décadas de 1990 e 2000 funcionavam bem com fragmentos longos de ADN, mas mostraram-se inconsistentes ao analisar as amostras de Hauser", explica Turi King .
Embora um dos mistérios em torno de Kaspar Hauser tenha sido desvendado, a questão da sua verdadeira identidade persiste. O ADN mitocondrial de Hauser foi identificado como pertencente a uma linhagem da Eurásia Ocidental, mas os cientistas não conseguiram determinar uma origem geográfica mais específica.
“Assim, ele permanece um enigma quanto às suas origens”, conclui King.
Fonte de inspiração para a literatura e cinema
O mistério de Kaspar Hauser é uma história com todos os ingredientes para inspirar escritores e cineastas. Werner Herzog trouxe para o cinema o livro "O enigma de Kaspar Hauser" em 1957, enquanto outros foram buscar o enredo para basearem outras história como "O Homem Elefante" de David Lynch, "Os Idiotas" de Lars von Trier ou o mais recente "Poor Things" de Yorgos Lanthimos.