“Kamala Harris. Vamos lá ter um bom debate.” Donald Trump não estava à espera que a vice-presidente se deslocasse até ao seu púlpito para lhe apertar a mão. O gesto inicial e inesperado da democrata — que se apresentou, uma vez que nunca tinham estado na presença física um do outro — foi um primeiro momento em que o milionário ficou desarmado. Um de muitos.

As coisas não se desequilibraram muito até a democrata aludir aos comícios de Trump, de onde, alegou, as pessoas saem “por exaustão e tédio” ao ouvirem-no falar de Hannibal Lecter ou de “moinhos que causam cancro”. O republicano mordeu o isco: se em junho o víramos controlado contra um Joe Biden atarantado, agora deixou de conseguir ocultar a raiva.

Harris, fora algum aparte, respeitou as regras e recorreu a eficazes olhares incrédulos e sorrisos sardónicos. Bastou-lhe deixar o adversário discorrer sobre execuções de bebés ou imigrantes indocumentados a comer cães em Springfield, Ohio (momentos em que os moderadores o desmentiram, para Trump retorquir, no segundo caso: “Eu vi pessoas na televisão…”).

As provocações não cessaram do lado da democrata e Trump raras vezes lhes resistiu: os mais de 200 ex-colaboradores seus que a apoiam; os crimes de que está acusado, do económico ao sexual, passando pela tentativa de falsear eleições; o reconhecimento, logo desmentido, de que perdeu “por uma nesga” em 2020; o tempo gasto a falar da invasão do Capitólio em 2021.

Não é que Harris tenha resolvido a maior debilidade que lhe apontam, incluindo Trump: falta de concretização. Fala de “economia de oportunidade”, puxa pelas origens de “classe média”. Promete alívio a famílias e pequenas empresas. Diz coisas muito consensuais sobre Israel e a Palestina. Ninguém fica a saber mais sobre o que faria, no poder, quanto a cada assunto.

Acontece que essa fragilidade é partilhada com o adversário. A hipérbole — “a maior economia”, “os maiores comícios da história da política”, “um plano brilhante”, “a pior inflação”, “a pior vice-presidente” — ou desmentidos ao FBI e ao poder local não põem comida na mesa dos americanos. E a ideia de deportar 11 milhões com ajuda da tropa fala por si.

Tampouco vai Trump resolver guerras “em 24 horas”, como promete, ainda que se gabe de amizade com Putin ou Orbán. Esteve bem Harris ao declará-lo incapaz de resistir a um ditador: “Podem manipulá-lo com lisonjas e favores”. Já nem entro nos dislates sobre o talibã Abdul, convidado para Camp David, desperdiçando promissora linha de ataque contra Biden e Harris.

A vice-presidente combinou informalidade — “Eu avisei que iam ouvir um monte de mentiras deste tipo”, “Este [hesitação] antigo Presidente”, “Donald Trump foi despedido por 81 milhões de pessoas” — com firmeza, destacando-se em temas como o aborto, o respeito pelo Estado de Direito, e sem perder a compostura quando criticada ou insultada pelo rival republicano.

Vi uma Presidente verosímil contra um Presidente inverosímil, mas este não precisa de verosimilhança, pois já venceu eleições, em 2016, mesmo tendo perdido debates. Os ventos sopram a favor de Harris? Sim, mas o que conta são sufrágios na urna. Não sei dizer se o duelo de ontem pesou mais ou menos do que a publicação felina de Taylor Swift logo a seguir.