Em 2012, o United States National Research Council propôs que as escolas norte-americanas começassem a desenvolver programas de integração curricular entre as disciplinas científicas, puras e duras, como Matemática, Engenharia, Tecnologia e Ciência. Assim se popularizou o acrónimo STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics), que teve grande sucesso e se disseminou por todo o planeta educativo ocidental.
Imediatamente, se produziram milhares de materiais didácticos para aplicação em sala de aula que mudaram a forma como se olhava para estes domínios do Saber, agora especialmente interessados em partilhar experiências, recursos, entusiasmos e ideias. O sucesso, pode dizer-se, foi notório e sólido.
O conceito STEM revelou-se tão funcional que qualquer profissional da educação científica passou a dispor de bibliotecas inteiras de recursos multimedia que podem transformar práticas obsoletas de aprendizagem em oportunidades realistas de estimular o conhecimento científico entre os nossos miúdos.
As science fairs (feiras de ciência) que já faziam parte da história escolar norte-americana conheceram um novo vigor e a abertura à comunidade científica que o conceito STEM fomentava gerou um entusiasmo partilhado entre miúdos, professores e cientistas.
O A que faltava
Contudo, ao mesmo tempo que os resultados deste novo conceito de divulgação científica se mostravam compensadores, cedo se ergueu uma crítica sistémica ao projecto: faltava-lhe qualquer coisa. O conceito STEM, que promovia o diálogo franco entre as ciências ditas exactas, sentia o desfalque de outras aptidões que se revelavam vitais, mesmo para o desenvolvimento das chamadas hard skills. O trabalho de equipa, a criatividade, a adaptação à mudança, constituindo algumas das mais decisivas destrezas do trabalho científico, não estavam a ser devidamente encorajadas pelo sistema de ensino.
Uma focalização exclusiva nas hard skills STEM não providenciava estas competências, ditas soft. E a cultura empresarial reivindicava-as. Foi com este dilema que o conceito STEM percebeu que lhe faltava um A. Um A de Arte. O STEM evoluiu para STEAM, a todo o gás. O A que faltava era o do pensamento artístico.
O velho currículo STEM transformou-se, exigindo-se agora dos profissionais da Ciência uma qualificação específica que privilegiasse a imaginação, a criatividade, a cultura e o raciocínio artísticos.
Colocar artistas, gráficos, designers, em trabalho conjunto com engenheiros permitiu gerar equipas muito mais expeditas e notoriamente mais produtivas. Incorporar as humanidades, as literaturas, a dança, o teatro, as artes visuais e os novos media na esfera profissional da Ciência revelou um incremento visível nos níveis de qualidade e criatividade produtiva das empresas. Um êxito.
A Arte como andarilho da Ciência
Esta ávida apologia das artes foi amplamente divulgada por todo o mundo. STEAM era a nova coqueluche educativa. Não obstante, cedo se percebeu que algo voltara a correr mal.
Ao contrário do que se esperava, a novidade não foi propriamente bem recebida por todos. Havia mesmo gente muito zangada. O famoso STEAM era, afinal, uma cilada para todos quantos julgavam ter chegado finalmente a consagração da Arte como protagonista dos currículos escolares. Uma armadilha que apanhou muita gente de surpresa. Como censurar este namoro entre a Ciência e a Arte? E, sobretudo, por que motivo fazê-lo?
A maior condenação ao conceito STEAM era, afinal, previsível. Conceber o pensamento artístico como um instrumento para o desenvolvimento das ciências pressupunha uma iniludível menorização do pensamento e da cultura artísticas. A ênfase STEAM estava integralmente colocada na prossecução de metas científicas, aproveitando os notáveis benefícios trazidos por uma qualquer metodologia artística.
De repente, o artista via-se como o proletário do cientista. Criado com a mais benigna das intenções, o STEAM destinava à Arte a função de servente da Ciência. Sem o esperar, todo este processo acabava de introduzir novos azedumes no confronto pedagógico entre Arte e Ciência. A subalternização da Arte em relação às ciências tornara-se intolerável. O conceito STEAM ameaçava ruir. E, diga-se a verdade, não saímos ainda de forma convincente deste ponto da situação. O debate é vivo e as barricadas permanecem erguidas.
O patrão de Nijinsky
Não obstante, pensando bem, ainda bem que aqui chegámos. Porque da discussão nasceu bastante luz. O que podemos nós retirar de positivo desta inesperada batalha campal entre artistas e cientistas? Muitas coisas, mas vale a pena destacar duas.
Em primeiro lugar, aquilo que esta briga trouxe de mais irrefutável é o mérito da Arte como elemento central para a construção do currículo integral dos nossos jovens. Se fossem os artistas a arrazoar que a Arte é indispensável para a formação dos nossos miúdos ninguém ligaria nenhuma. Sabemos que assim é porque os artistas andam a dizê-lo há séculos e nunca ninguém lhes ligou pevide. Mas como desta vez são os cientistas e as empresas a fazer a defesa da cultura artística, outro galo canta.
Não há ninguém que hoje em dia se dedique a conceber currículos escolares que não confiram às artes um lugar central em todos os domínios. Mas, em Portugal, estamos ainda longe desta realidade. Um aluno do ensino secundário que escolha Ciências e Tecnologias ou Ciências Socioeconómicas pode mesmo deixar de ter contacto com um qualquer segmento curricular ligado abertamente às artes. Este vazio descura todo o debate mundial que se trava no que concerne ao lugar das artes nos curricula.
A outra grande consequência que retiramos desta briga é que não pode deixar-se cometer a Arte à condição de serviçal da Ciência ou do que quer que seja.
O artista não é o escudeiro do cientista. Beethoven não é o camareiro de Hawking, Kahlo não é a aia de Curie, Newton não é o patrão de Nijinsky, nem Picasso é o Sancho Pança de Einstein.
Artistas na escola
Como se faz isto numa escola? Como se deixa entrar a Arte numa escola? Concebendo todo o exercício artístico como provido de uma identidade, uma linguagem autónoma, que se aprende em contexto real e com ramificações imprescindíveis com todas as áreas do conhecimento. Seja na forma ou na semântica. Se mais não houvesse – e há - a arte digital e a educação para os media vieram sublinhar inteiramente as oportunidades de pôr tudo isto em prática.
Nunca como hoje tiveram as escolas e os professores melhor conjuntura para construir estas pontes entre saberes habitualmente divorciados. Os ministérios da educação têm a obrigação de o fazer de forma diligente. E, neste domínio, Portugal vem percorrendo um caminho que cumpre enaltecer.
Com a introdução do Plano Nacional das Artes, cada agrupamento escolar pode hoje elaborar um Plano Cultural de Escola e desenvolver um percurso autónomo, livre e criador que promova a cultura artística junto dos nossos miúdos, junto dos nossos professores. É sempre higiénico zurzir na classe política, mas honra seja feita aos decisores que compreenderam e que porfiam este imperativo.
Pela primeira vez na nossa história foram criadas residências artísticas nos agrupamentos escolares. Esta medida representa a pedra-de-toque de uma revolução pertinente, pragmaticamente fecunda e acertada. São já dezenas por todo o país e tendem a aumentar.
Em Portugal há cada vez mais lugar para os artistas nas escolas. Mais claro ainda: há actores, pintores, coreógrafos, bailarinos, músicos, escultores, escritores com funções laborais nas escolas portuguesas. A sua presença ainda é demasiado eventual e precisa de ser legislativamente consolidada e orçamentada, mas o caminho faz-se caminhando. É verdadeiramente saudável o percurso que vem sendo seguido neste domínio do enaltecimento autonomizado das artes.
Um par de botas
Todas as escolas testemunham que o resultado destas medidas é uma participação dinâmica, zelosa e entusiasmada dos nossos miúdos. Jovens que se afastaram da vida escolar estão de volta por causa das artes.
As escolas estão mais presentes e vivas por causa das artes. Miúdos que se alimentavam de ecrãs e de desterros íntimos estão a mexer noutras coisas, a fazer das suas, a pensar de outras formas e a conhecer outras gentes por causa do que estes artistas andam a fazer nas escolas. E não são apenas os alunos que precisam disto. Os professores necessitam igualmente destas pessoas como de pão para a boca.
Uma classe desmotivada, envelhecida, precisa de outras linguagens, outras práticas, outras rupturas, nascidas de fora, vindas de gente que escolheu fazer da criatividade e da cultura crítica o seu ganha-pão. Trazer a comunidade para dentro da escola e vice-versa e criar novos públicos não podem ser ideias simpáticas. Devem ser entendidas como componentes elementares da saúde de um sistema educativo. Ainda por cima representa para muitos artistas uma muito necessária fonte de receita e de estabilidade. Está, pois, tudo certo. O caminho é este. Ultrapassemos as dificuldades e sigamos em frente.
Há uns anos, numa entrega de prémios de poesia, um autarca conhecido da nossa praça dizia que gostava muito de poesia. Aliás, confessava ele, “sempre que chego a casa cansado, descalço as minhas botas, sento-me num cadeirão com um whisky e ponho-me a ler poesia. Fico logo relaxado”.
A Arte não é um par de botas que se calce ou descalce. A função da poesia, como da arte, não é, nunca foi, a de estar ao serviço do conforto. Muitas vezes, as melhores das vezes, é justamente a oposta, derrubando ortodoxias e perseguindo, incansável, deliberada e laboriosamente novos desconfortos. A escola vive também desse desconforto. A Arte não é uma comodidade. Não é uma disciplina. Pelo contrário: precisamos todos do seu incómodo e da sua indisciplina.