Apenas em 2024, segundo fontes oficiais, 25 mulheres foram assassinadas reiterando a realidade observada ao longo dos anos.
Deste modo, questionamo-nos acerca do que falta para conseguirmos alterar esta realidade, considerando que em Portugal dispomos de:
- Sistemas de acompanhamento e monitorização que nos proporcionam informação detalhada acerca das situações específicas das mulheres assassinadas, destacando-se o Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) que, com coragem e crueza, recolhe e analisa desde 2004 os dados das mulheres com os seus nomes, os locais do feminicídio, a arma do crime e o tipo de relacionamento entre femicida e mulher assassinada;
- Uma Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD) que, desde 2017, produz relatórios incisivos e exaustivos sobre os processos de femicídio e as respostas dos vários sistemas, mas que não foram suficientes para evitar a morte de cidadãs;
- Uma Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica que congrega serviços de atendimento, casas abrigo e acolhimentos de emergência distribuídos pelo território nacional, sendo que as pessoas e as suas famílias podem ser deslocalizadas para obter respostas, elemento potenciador de vulnerabilidade, por gerar ruturas abruptas com as redes individuais e familiares;
- Um número significativo de mulheres ativistas que confrontam, questionam, exigem e que propõem o desenvolvimento de novos serviços, formas de apoio e respostas para as mulheres;
- Um vasto conjunto de organizações e serviços compostos de profissionais com formação específica, interesse e empenho e, por vezes, correndo riscos na intervenção e apoio a mulheres envolvidas em situações de violência interpessoal e violência doméstica;
- Organismos públicos como a Comissão para a Igualdade de Género, com a missão de aprofundar e promover o conhecimento, apoiar e monitorizar a intervenção na área da violência contra as mulheres em todas as suas formas, incluindo a violência doméstica;
- Investigadoras/res nos mais variados ramos das ciências sociais e humanas que investigam e publicam nacional e internacionalmente os seus trabalhos de investigação qualitativa e quantitativa;
- Meios de comunicação social que reportam, mostram e demonstram a violência dos crimes;
- Cidadãs e cidadãos que se indignam perante cada crime cometido, por cada expressão de ódio contra as mulheres, que persiste em todas as esferas da sociedade, independentemente da idade, da origem étnica, do estatuto socioeconómico, da orientação sexual, dos conceitos vigentes de beleza e que é inerente à condição de ser Mulher.
Desta forma, torna-se muito urgente transformar, pelo que nos devemos centrar na promoção da mudança transformativa e da justiça social para as mulheres e especificamente na intervenção na área da violência e discriminação com base no género, focar-nos nos valores relacionados com esta área de mudança social em que a persistência dos femicídios deve ser considerada como um fator crítico e catalizador de mudança.
Devemos apostar numa intervenção centrada na génese da violência de género, não como uma expressão psicopatológica ou um diagnóstico de doença mental a ser tratada através de psicoterapia e/ ou medicação psiquiátrica, tanto de vítimas como de agressores, centrada nas origens culturais profundas do machismo, sexismo e de ódio misógino em torno dos quais se constrói a masculinidade.
O foco deve estar nos valores de justiça social de igualdade de oportunidades, de redistribuição de recursos e de participação cívica em questões sociais promotoras do bem-estar psicológico, emocional e de segurança e no aprofundamento das Políticas Públicas que facilitem o recentramento da validação e enquadramento das narrativas dos diversos intervenientes nas várias formas e instâncias da intervenção.
É urgente promover o Mecanismo Independente para a audição e participação ativa de mulheres sobreviventes, de filhas e filhos, de mães e pais, de irmãs e irmãs e famílias de mulheres sobreviventes e mulheres assassinadas para que se gere um debate profundo acerca dos recursos de apoio para todas as pessoas afetadas por estes acontecimentos trágicos.
Um debate alargado sobre violência de género que tem de ser analisada prioritariamente numa perspetiva cultural/histórica e não como uma característica pessoal, de personalidade ou psicopatologia de uns quantos agressores que são diferentes de todos os outros homens. Esta é uma responsabilidade de todos e todas.
É preciso atenção redobrada aos estereótipos com base no género face às mulheres migrantes e às formas como são também vítimas de formas de abuso no processo migratório, às mulheres das comunidades ciganas, às mulheres com deficiência e/ou doença mental.
Todos temos de assumir as nossas responsabilidades e comprometer-nos com uma intervenção proativa na prevenção da violência em todas as etapas de desenvolvimento humano e em todas as idades.
Maria João Vargas-Moniz (Professora Auxiliar e Investigadora do Ispa)