Nos primeiros dias sob autoridade dos grupos armados rebeldes que depuseram em 08 de dezembro o ditador sírio, há cada vez mais lojas abertas, que trocaram a antiga bandeira nacional pela nova e revolucionária de três estrelas, as escolas estão a funcionar desde o passado domingo, após uma semana sem aulas, e o aeroporto internacional de Damasco foi reaberto a meio da semana.

Os bancos também reativaram a sua atividade, ainda que os levantamentos estejam limitados a um valor equivalente a 40 dólares por dia, tal como as caixas de levantamentos automáticos, com filas separadas para homens e mulheres, mas várias pessoas queixam-se de atrasos nos pagamentos de reformas e de prestações sociais já de si miseráveis, quando muitas instituições públicas ainda permanecem fechadas.

Os mercados informais encontram-se bem abastecidos com grandes variedades de legumes, vegetais frutas, mas os preços estão a subir, incluindo bens essenciais, logo à cabeça o pão, agora que foram desativados os cartões que eram distribuídos às famílias, com as respetivas quotas de consumo, que também incluíam combustível e gás doméstico.

Num beco poeirento junto da cidade velha, acumulam-se uns 50 homens à porta de uma padaria e um deles, no fim da fila, espera demorar cerca de meia hora para ser atendido. Mas relata que houve tempos, durante a última década, que podiam ascender a cinco ou seis, dando conta de que ainda existe uma espécie de racionamento informal, imposto pelos próprios comerciantes, para que ninguém fique sem pão.

"Mas oxalá que em breve não precise de mais do que alguns minutos", comenta este morador de Damasco, que lamenta a subida do preço, ainda que a quantidade padrão não seja a mesma. Anteriormente, um saco de sete pães (tipo árabe) custava 500 libras sírias (três cêntimos) e agora um saco de 12 vale quatro mil (30 cêntimos), numa moeda altamente desvalorizada.

Segundo as Nações Unidas, mais de 90% dos sírios foram empurrados para a pobreza, em resultado da guerra civil que devastou o país desde 2011 e arrasou os bairros periféricos da capital. No início do ano, o ex-Presidente Bashar al-Assad anunciou um aumento de 50% para os funcionários públicos, mas a base era bastante baixa, com o salário médio a variar entre o equivalente a 20 e 40 euros, conforme a sua cotação em cada período.

Nos últimos momentos do Governo de Bashar al-Assad, que reprimia o uso do dólar na economia, a libra atingiu a sua desvalorização máxima, para um valor sem precedentes de 19 mil face ao dólar, e, já sob a administração das novas autoridades rebeldes, a moeda síria teve uma recuperação, mas o valor entretanto estabilizou. Em muitos estabelecimentos comerciais, até em pequenas bancas simples de 'street food', continuam a ser usadas máquinas de contagem de notas para fazer pequenos pagamentos simples.

Depois de breves períodos de falta de combustível na capital síria, muitos postos de abastecimentos mantêm-se encerrados, mas em contrapartida é fácil encher o depósito no mercado negro, sobretudo desde que desapareceu temporariamente o controlo alfandegário nas fronteiras ou muitos intermediários dos negócios informais.

Um taxista sírio na fronteira de Masnaa, com o Líbano, que leva a bagageira cheia de garrafões de gasolina e bilhas de gás, conta que o combustível que compra no país vizinho vende por mais do dobro na Síria, o que ajuda a explicar a grande quantidade disponível no mercado negro e mais barato do que nos estabelecimentos oficiais, quando o têm.

"Rezo para que venham dias bons e que tudo esteja bem depressa, quando começarmos a trabalhar todos juntos", deseja o homem da fila da padaria, esperando igualmente por condições que permitam enfrentar o elevado custo de vida e ter acesso completo à eletricidade, que apenas está disponível duas horas por dia.

Há uma semana, as ruas de Damasco encheram-se em festa durante a primeira sexta-feira de oração islâmica pós-Assad, respondendo ao pedido de uma grande celebração, sem tiros nem intimidações, do líder da Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, HTS), Mohamed al-Jolani, o principal grupo da coligação rebelde que depôs o regime. E, para já, uma das suas grandes vitórias é a tranquilidade que reina na capital síria.

Em toda a cidade, sobre os restos de imagens derrubadas de Bashar al-Assad e do seu pai, Hafez, que dirigiram nas últimas décadas uma máquina altamente repressiva e cruel contra o seu povo, as ruas e edifícios estão agora decorados com as novas cores nacionais, homenagens a opositores mortos na guerra contra o regime, incluindo o controverso Abdul Baset al-Sarout, morto em combate em 2019 aos 27 anos e autor da canção revolucionária "Paraíso", que se ouve em cada esquina.

De modo surpreendente para um país que acaba de sair de uma guerra e de um golpe armado, há poucos postos de controlo militar e estes são habitualmente descontraídos e até festivos, com soldados e polícias presentes mas não hostis, face a uma população que está a aprender a lidar com as suas novas forças de segurança, maioritariamente provenientes das zonas libertadas de Idlib, no nordeste da Síria, e de países vizinhos.

No entanto, a sua militância em grupos terroristas ligados à al-Qaida e ao Estado Islâmico, apesar do tom inclusivo adotado por al-Jolani, no caminho do seu grupo para o poder, ainda provoca inquietação.

Na quinta-feira, centenas de pessoas exigiram na Praça dos Omíadas a criação de um estado secular e respeitador dos direitos das mulheres. "Não ao governo religioso", "Deus é pela religião e a pátria é para todos" e "Queremos uma democracia, não um estado religioso", eram alguns dos 'slogans' entoados no mesmo lugar em Damasco que juntou dezenas de milhares de pessoas em festa, mesmo quando vigorava o recolher obrigatório noturno, nos primeiros dias após a queda da dinastia Assad.

Apesar de tentativas dos soldados presentes de transmitir confiança no triunfo da revolução, também se ouviram no protesto de quinta-feira na Praça dos Omíadas outras palavras de ordem contra "um regime militar" e reclamando a escolha das novas autoridades através do voto popular.

Uma entrevista do porta-voz das autoridades de transição de Damasco, Obeida al-Arnaout, ao canal libanês al-Jadeed suscitou igualmente amplos protestos nas redes sociais na Síria, quando defendeu que a "natureza biológica e psicológica das mulheres não é adequada para alguns cargos", como o Ministério da Defesa, a par de outras declarações ambíguas sobre temas comportamentais associados à lei islâmica, que muitos militares da HTS advogam.

Desde o colapso do regime, veem-se cada vez mais mulheres nas ruas sem véu e vários restaurantes e cafés começam a vender álcool, após terem começado por escondê-lo nos seus estabelecimentos. Agora exibem-no abertamente, mas ainda é cedo para apurar a natureza do futuro estado.

Timidamente, começam também a surgir notícias de efetivos das anteriores unidades militares e policiais a registarem-se nas forças regulares em construção, que são bem-vindos segundo al-Jolani, desde que não tenham "as mãos sujas de sangue", noutro tema sensível da agenda governamental, quando as famílias sírias procuram desesperadamente mais de cem mil pessoas que se estima terem desaparecido durante a repressão de Assad e agora clamam por justiça e, em grande parte, vingança.

*** Henrique Botequilha (texto) e António Pedro Santos (fotos), enviados da agência Lusa ***

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