Foi perante um auditório despido em mais de metade que arrancou o painel do Tribeca Festival Lisboa dedicado ao empoderamento e à representação feminina na arte de contar histórias. Um reflexo do quase vazio a que a indústria do cinema ainda reduz a mulher? Uma leitura (entre outras) passível de ser feita.

Em cima do palco estavam a realizadora Patty Jenkins, as atrizes Mariana Monteiro e Soraia Chaves, a cantora Gisela João e a apresentadora Inês Lopes Gonçalves, numa sessão moderada pela embaixadora dos Estados Unidos da América em Portugal, Randi Charno Levine. O elo de ligação entre todas: serem, segundo as próprias, mulheres em mundos de homens– o cinema, a música, a rádio, a diplomacia. Como se o resto dos mundos fosse, afinal, deixado às mulheres.

Randi Charno Levine começa por constatar que é, muitas vezes, a única mulher na sala. Isso, argumenta Inês Lopes Gonçalves, é porque não podemos tornar-nos algo que não vemos. Se não vemos mais mulheres diplomatas, então não esperamos que as mulheres se tornem diplomatas. E estão lançadas as cartas para uma conversa sobre representatividade, os estereótipos ainda hoje enfrentados pelas mulheres, assim como os desafios familiares e qual a estrada a seguir em direção à equidade.

"Sou sempre uma cineasta mulher, nunca só uma cineasta"

A realizadora norte-americana Patty Jenkins percebeu que era tratada de forma diferente na indústria assim que realizou o primeiro filme, o aclamado Monster. Naquilo que lhe era pedido, no modo como era paga.

“Sou sempre uma cineasta mulher, não sou simplesmente uma cineasta”, constata , apontando a discriminação sentida.

Desde essa primeira longa-metragem, passaram mais de vinte anos. Patty Jenkins chegou ao mainstream, com Wonder Woman - o blockbuster que fez dela a própria Mulher-Maravilha da realização. Tornou-se a primeira mulher a realizar um filme com um orçamento superior a 100 milhões de dólares. Mas sabe que é a exceção à regra.

Nada mudou. O pagamento igual não existe na indústria cinematográfica, admite.

"Bem-comportada" ou "dura": e que tal "normal"?

Da Califórnia para Barcelos. Atravesse-se um oceano. Chegue-se a um outro continente. A uma outra indústria. Não a do cinema, a do fado. A experiência não é assim tão díspar. Gisela João diz ter compreendido, desde cedo, que era a “ovelha negra” naquele mundo.

“Não vinha das cidades grandes, não v inha de boas famílias e era uma mulher , por isso, descobri, não podia cantar fado ”, relata.

Ainda adolescente, nos concertos, estava rodeada de homens – dos managers aos técnicos. E, se a avó lhe dizia que tinha de ser uma “menina bem-comportada" - coisa que, afirma, ainda hoje não sabe o que significa -, na estrada, as outras mulheres aconselhavam-na a apresentar-se como “dura”, para ser levada a sério. Decidiu que não queria ser nem uma coisa, nem outra.

SIC

Também Soraia Chaves afirma saber bem o que é enfrentar determinadas expectativas ao tentar construir uma carreira enquanto mulher.

“As mulheres são vistas pelo lado da vaidade”, comenta. Isto tanto na Rússia, onde estudou representação, quando lhe era imposto que usasse saia e saltos altos para representar personagens femininas nas peças de Tchekhov, como em Portugal, onde lhe reservavam apenas papéis de femme fatale.

Limites que a atriz rejeita. “Temos de poder representar o maior tipo diferente de mulheres possível. Não ficar presas a um estereótipo”, defende.

Então e se as mulheres forem simplesmente “normais”? Esse, segundo Inês Lopes Gonçalves, é o segredo para o sucesso do programa de rádio que protagoniza, todas as manhãs, com outras duas mulheres.

“Não há muitos anos, as mulheres na rádio só podiam trabalhar em parelha com um homem”, nota Inês. E, mesmo assim, com a função de complementá-lo.

Hoje, três mulheres - além de Inês Lopes Gonçalves, Joana Marques e Ana Galvão - ocupam o horário nobre radiofónico, que contém a rubrica mais ouvida, a nível de podcasts, em todo o país.

“É um passo gigante”, adm ite Inês Lopes Gonçalves.

SIC

"Hollywood tem de acordar: a nova geração não precisa dela"

Sim, os passos estão a ser dados. Disso Patty Jenkins não tem dúvidas. Seja no modo como as histórias são contadas, com a impregnação de uma “lente humana” por trás das personagens femininas (“O pior falhanço é quando se tenta fazer a personagem feminina como um homem”, afirma), seja no modo de funcionamento da indústria (e a própria foi um veículo dessa mudança, ao permitir às mulheres que trabalham nos seus filmes que levem os filhos para o set).

“Ser mãe não tem de ser uma desvantagem”, sublinha.

Hollywood, essa, avisa Patty Jenkins, tem de "acordar", porque as novas cineastas estão a descobrir que não precisam dela para se fazerem ouvir.

Lembrando como as novas tecnologias permitem abdicar de mediação, a realizadora fala numa nova geração que “está a encontrar uma audiência própria, sem ter a indústria por trás a estabelecer barreiras”.

Os mais novos como audiência e os homens como aliados

E se é de novas gerações que se fala, Mariana Monteiro considera que as crianças são “a audiência mais importante” no que à igualdade de género diz respeito.

A atriz, que lançou um livro infantil dedicado ao tema, lembra que, mesmo nos dias que correm, os direitos conquistados pelas mulheres não estão garantidos.

“Estamos em 2024 e, no Afeganistão, nesta altura, uma mulher não pode usar a sua voz, nem sequer na própria casa pode cantar ou ler em voz alta”, sublinha.

“Já atingimos muitas coisas, mas podemos perdê-las. É importante trazer este tema para cima da mesa o máximo possível, e começar pelas crianças”, reforça.

Com uma nova geração atenta e pronta para lutar para que não lhe seja retirado aquilo que outros lutaram para que tivesse. Mas também com aliados. Uns particularmente relevantes: os homens.

“É importante que os homens entendam o nosso ponto de vista. Que não achem que estamos a afastá-los. A empurrá-los”, repara Mariana Monteiro.

Temos de trazer os homens para esta conversa. Não tem de ser uma coisa polarizada. Podemos fazer isto juntos”, conclui.