
A morte do Papa Francisco está a ser vivida como uma enorme perda para a grande multidão de crentes e não crentes que, pelo mundo fora, se reviram no seu pontificado curto em duração, mas longo nas mudanças que foram introduzidas.
Ao mesmo tempo, a partida está também a ser vivida com alegria e muita satisfação por uma certa igreja que não cessa na ambição de um regresso ao estatuto anterior ao Concilio Vaticano II e, em alguns casos, à sua preponderância política e social anterior à Revolução Francesa.
Por estes dias, Roma é o centro de dois mundos completamente distintos, o dos crentes, simples e tementes a Deus e o da cúria, cheia de interesses, conflitos, traições e ambições.
Francisco conseguiu chegar aos corações de centenas de milhão de seres humanos e, ao mesmo tempo, construir um exército enorme de militantes contra o seu apostolado. Desde os tradicionalistas, que não cessam no regresso ao rito latino, aos conservadores, que se impõem pela não cedência à realidade dos tempos correntes, indo aos “sedevantistas” que eliminaram o sumo pontífice, que veio do “fim do mundo”, da sua reverência e respeito.
Mas quem foi Francisco no contexto dos Papas que presidiram à Igreja Universal nos últimos 125 anos?
Poderemos dividi-los em dois grupos – os revolucionários e os reacionários.
Muitos dos vaticanistas poderão considerar que se trata de uma leitura simplista. Poderemos até concordar se determinarmos uma grelha muito estreita de avaliação. Mas, para o grande universo católico, a divisão que aqui propomos vai fazer sentido.
O Século XX é o grande período histórico em que a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) se coloca à prova depois das longas centenas de anos posteriores à sua legalização por Constantino e aos cismas. É o tempo das grandes guerras, das revoluções políticas, da descolonização, da universalização, da tecnologia e da virtualização.
Em todo este tempo, Roma foi estando à altura, abrindo portas ou resistindo perante cada nova investida.
Não são poucos os que consideram que o marxismo terá sido, no passado século, o grande inimigo da Igreja. Não partilhamos dessa visão. O grande adversário foram, para os diferentes papas, o iluminismo, a consagração das ciências sociais, a verificação da sociologia, da psicologia, da antropologia e, em certa medida, da história, como áreas do saber que implicaram, de forma profunda, na visão e na presença da fé católica no mundo. E também foi a biologia, com as suas decorrências, a dar novas verdades sobre a complexidade do ser humano.
É, portanto, mais relevante a ação/reação da Igreja ao movimento liberal crescido depois da revolução francesa, resposta desacertada à emergência do povo enquanto classe.
A ICAR vivia, no final do século XIX, os impactos da Revolução Industrial. O capitalismo avançava no mundo ocidental e a mão de obra fazia crescer uma vasta classe de novos escravos. A Igreja era, no essencial, a força relevante nesse tal mundo do velho continente e na emergente América do Norte.
Leão XIII, o primeiro Papa de quem temos imagens reais, olha atentamente para a realidade e antecipa a resposta às potenciais sublevações comunistas. Ele foi o primeiro grande revolucionário dos tempos modernos ao proclamar, através da encíclica Rerum Novarum, os fundamentos do que viria a ser a Teoria Social da Igreja e a base ideológica da democracia cristã, uma das duas partes, em conjunto com a social democracia, que fizeram o Estado Social como o conhecemos hoje.
Se há uma proximidade grande aos princípios do Direitos do Homem, é mesmo o pensamento de Leão XIII na transição do último século das luzes para o século dos grandes conflitos e confrontos universais.
E foram os grandes conflitos que fizeram os papados de Pio X a João XXIII. Pio X centraliza a doutrina através de um novo breviário, amplia o poder de Roma com a afirmação férrea do direito canónico, alarga a eucaristia às crianças com base na “infantilização” da catequese. Fecha-se e aprofunda o reacionarismo que era lógico pela sua origem e visão teológica.
Bento XV foi um papa que se alistou nos perdedores da primeira Guerra Mundial. O seu reacionarismo fez dele um defensor de grandes blocos europeus e, esquecido das previdências diplomáticas, a sua ação temporal levaria ao afastamento da Santa Sé da Sociedade das Nações. Foi o seu sucessor, Pio XI, quem resolveu a questão dos “estados papais” e concretizou o que hoje se tem como Estado do Vaticano. Pio XI, ao mesmo tempo que assinava concordatas com a Alemanha e a Áustria, que se aproximava em termos sociais de algumas das visões dos movimentos fascista e nacional-socialista, antecipava a loucura de Hitler e um novo conflito global. Não é, porém, este suspiro histórico, proclamado pela única encíclica escrita em alemão, a retirá-lo do panteão dos reacionários.
Pio XII segue o seu predecessor numa perspetiva reacionária das relações sociais. Não deixa, porém, de encontrar um difícil equilíbrio entre a convivência com o “eixo” a ação protetora dos povos invadidos e dos judeus italianos. Quem o elogia releva um certo regresso a Leão XIII pela aceitação envergonhada da defesa da democracia, o início tímido da valorização da mulher sem lhe dar, porém, o direito de decidir sobre si própria. Mas é insuficiente para uma consideração mais benévola.
João XXIII, foi um papa pai. O seu curto pontificado revelou-se na dimensão pastoral. As encíclicas sobre a justiça social e sobre a paz abriram a vida da ICAR para as décadas seguintes. A sua experiência diplomática permitiu manter uma linha direta entre os Estados Unidos da América e a União Soviética. Não se pode dizer que tenha conseguido ser um revolucionário, talvez um pensador reformista.
Chegamos à década de todas as décadas do Século XX. Paulo VI é o papa que toca e transforma todas as dimensões da Igreja.
É a ele que cumpre concluir o Concílio Vaticano II. Não é só a dimensão policêntrica que as grandes reformas vão implicar, é a nova realidade social que o mundo vive com as liberdades que a ciência e a televisão trazem às sociedades em emancipação.
Com Paulo VI, o segundo grande revolucionário do século, tudo muda por vontade ou por implicação. É o pontífice que visita, pela primeira vez, todos os continentes, é o evangelizador que “abusa” da comunicação para intervir politicamente, é o militante que dá voz aos povos colonizados e promove a sua autodeterminação, é o lutador contra das ditaduras latino-americanas, é o promotor do espírito ecuménico na aproximação com outras igrejas cristãs.
À sua ação de rotura não deixou de contrapor, porém, com a nova “moral sexual cristã”. Tratou-se de uma tentativa de amarrar os crentes a uma visão do mundo já recuada. Porém, aquele múnus social estava em avançado estado de rejeição, o atavismo em que viviam os países católicos era atacado por novas realidades societais.
João Paulo I tem um magistério efémero e logo se segue o pontífice mais reacionário da ICAR desde 1900. Ataca os muitos que na Europa tocavam o “modernismo”, impede a adequação da ICAR às realidades sociais da América Latina, impõe visões internas de regresso ao clericalismo mais espúrio, autoriza um submundo vaticanista de corrupção e de podridão.
A pergunta que se pode fazer é esta – mas sendo tudo isto, o que faz dele o grande Papa que ficou na nossa memória? João Paulo II era um ator, conseguia impor a imagem e a palavra apesar do conteúdo. Mas também era um grande político. A sua luta contra o comunismo, que ajudou implodir, aparece como uma vitória para todas as sociedades livres. Porém, do outro lado está também a tolerância e aceitação do neoliberalismo nascido com Reagan e Thatcher, uma forma universal de exploração que consagra novos pobres e amplas faixas de excluídos.
Bento XVI é o mais interessante papa que segue. Em boa verdade, ele era já o pensamento teológico de João Paulo II, mas o seu magistério redargue por um ser dual. Entre o regresso a um certo tradicionalismo, de que são exemplos o crescimento da prática da missa em latim e os grandes rituais, e a visão profundamente ruturista que nos legou sobre a relação da Fé com a Ciência e sobre a existência de Jesus, encontramos alguém que é o passado e o futuro em conjunto, um compromisso de quem sabia os males do antes concílio, do pós concilio e do tempo corrompido em que vivia.
Francisco é o último dos revolucionários, é o grande revolucionário cristão da História posterior ao Concílio de Trento. Nele há muito pouco de igreja instituição, de implicação grave na vida dos fieis, de imposição. Com ele regressa o espírito primitivo, do rebanho que se junta na sua impureza de pecadores.
Francisco, ao não ser mais do que a igreja dos pobres, dos frágeis e dos oprimidos, é mais terra que céu, é mais pecador que santo. Em suma, é Jesus.
Ele criou uma nova realidade na ICAR que limita o clericalismo, que obriga a vir de baixo para cima, que equipara homens e mulheres, que obriga à linguagem simples que não olhe a origens, culturas os estatutos. A visão sinodal de Francisco é a grande revolução. Como diz D. João Braz de Aviz, antigo perfeito do Dicastério para os Institutos da Vida Consagrada, o Papa argentino “…acabou morrendo no meio do povo e levou a vida consagrada a procurar isso mesmo, o povo.”.
Não lhe rendem homenagem todos aqueles que decretam a côngrua, que se elevam dos demais na vida mundana. Dele os serventuários não dirão coisa interessante. Francisco é aquele que consegue olhar a trilogia que há mais de dois séculos ambicionamos - liberdade, solidariedade e fraternidade - refazendo-a numa outra trilogia com a mesma palavra – todos, todos, todos. Afinal, quem era ele para negar a entrada no reino dos céus a todos pecadores se, no reino terreno, a ICAR é, antes de mais, o maior centro do pecado?
No próximo mês saberemos quem segue. Será pelos pés que adivinharemos o futuro. Se o novo papa calçar de vermelho a ICAR vai recuar. Que o Espírito Santo seja mais forte que Satanás e ilumine os cardeais eleitores. Até pode haver uma pausa, mas Francisco voltará e vencerá.