A propósito do segundo episódio da tua série "Vai Correr Tudo Bem", há uma cena em que tens grande dificuldade em conduzir. Ficas muito ansioso, tens uma necessidade de voltar atrás para verificar se não atropelaste ninguém. Hoje vieste para cá de carro?
Excelente pergunta, começamos logo com uma melhoria terapêutica. Vim para cá de carro, sim senhor.
Boa. E quanto tempo é que demoraste?
Na verdade demorei o tempo que dizia o GPS. Que é uma grande vitória terapêutica também. Demorei nove minutos a chegar aqui, moro relativamente perto. Agora as pessoas podem fazer o perímetro a partir daqui e ver onde é que eu moro. Mas não voltei atrás no caminho. Isto é uma coisa que tentei esconder ao máximo antes da série.
Para mim foi até chocante ver na série a representação desta tua questão com a condução. Teres de retroceder para ver se não atropelaste ninguém. Se paraste no STOP, acredito. Coisas deste género.
Não, o STOP não. Porque isto tem a ver com controlo. O que eu sinto é que quando há alguma coisa que interfere comigo, por exemplo, uma lomba interfere com o carro. Aí tenho de voltar para confirmar, porque nada me garante se era uma lomba ou se era uma criança que estava a apertar os atacadores no meio da estrada. Aí tenho de verificar que correu tudo bem.
Eu não tinha ideia de que uma pessoa conseguia ir até esse extremo para controlar um problema que tem. Parte de uma base real, mas está exagerado ou era mesmo assim? Ou até era mais exagerado na vida real?
Sim. Eu jogo padel à segunda-feira. E para mim era muito trigger conduzir à noite. É quando acontecem os crimes, é quando os ladrões decidem assaltar as casas, decidem matar pessoas. Portanto, conduzir à noite era muito mais difícil do que conduzir de dia. Eu ia e usava um truque, filmava sempre o caminho.
Filmavas o caminho como?
Metia o telemóvel à frente e filmava. Sim, eu sou completamente maluco dos cornos. É a primeira vez que estou a dizer isto, já estás com um exclusivo. Imagina que ia de minha casa ao padel, demorava mais ou menos quinze minutos. Como sou uma pessoa muito pouco pontual, saio quinze minutos antes, não posso voltar atrás nessa altura, ou chego atrasado ao padel. Portanto, fui tentar arranjar uma estratégia que me permitisse não chegar atrasado e então comecei a filmar o caminho. E filmava sempre, se fores ver o meu rolo da câmara, há uns meses... Depois chegava ao destino e via o caminho todo. Cheguei a ver vídeos de duas horas meus de condução. Fazia um scroll rápido, lembro-me de que quando passava por viadutos e a luz baixava aí via com alto detalhe. Só por estar a falar sobre isto quer dizer que já não faço.
Em 2018 fazias um post no instagram, entretanto arquivado, em que falavas dos últimos dez minutos do teu espetáculo "Modo Voo". Escrevias: "Estou cansado de fazer humor sobre problemas que não tenho. Não me interessa se primeiro vem o leite ou os cereais. Primeiro vem sempre a ansiedade." Em 2019, quando vieste pela primeira vez ao podcast, perguntava-te porque é que só os últimos dez minutos eram sobre isso. Hoje, esses últimos dez minutos passaram a 2h30? Pegaste neste post e transformaste nos cinco episódios da série?
Porra, epá, tu és bom nestas. Fogo. Sabes no que estou a pensar? Eu vim cá há quatro anos. Se tudo correr bem daqui a quatro volto cá. Vais-me dizer algo que disse aqui e vou sentir-me profundamente…
Agoniado.
Sim. E constrangido.
Não é esse o meu objetivo, mas é normal. Repara, como tu arquivaste o post, eu tive de ir ouvir o episódio que gravámos há quatro anos. Ouvi-me a fazer a introdução, a fazer perguntas. E odiei também.
Mas eu fico a pensar se daqui a quatro anos vou arquivar a série. Porque eu arquivei muitas cenas da série. Nós temos quatro ou cinco dias de filmagens que não vão entrar. Não, mais! Isso que estás a dizer, esse post. Eu aí queria tocar com o dedo na ferida.
Aqui nesta altura, em 2018.
Talvez. E para quê? “És só um puto. Calma. Acalma-te lá um bocadinho.”
Depois de estrear no YouTube gostavas de ver a série numa plataforma de streaming?
Acho que é impensável eu fazer mais disto da forma que fiz, porque é violento. Porque dormes pouco e tive um filho entretanto, é muito duro. Para fazer mais disto alguém tem de nos ajudar. Isto saiu-nos do pelo. Tivemos um apoio do "Garantir Cultura". Não me importo de falar de valores. Tivemos um apoio de 50 mil euros do "Garantir Cultura". A série custou-nos sensivelmente um bocadinho mais do dobro disso. E o resto foi investimento pessoal e da agência [Kilt]. Acho que se devia falar de valores em Portugal, na boa.
E portanto estás a dizer que a série custou mais de 100 mil euros.
Custou à volta disso, sim. E o que eu sinto em relação a este valor é que as pessoas que não fazem produção vão achar que isto é muito dinheiro, ou não?
Eu não tenho ideia dos valores praticados e está a parecer muito dinheiro, sim.
Mas se disseres a alguma produtora que eu fiz isto com este dinheiro as pessoas não vão acreditar.
Tu gostas de fazer stand-up?
Há contextos muito específicos para gostar de fazer stand-up. Depende, fizemos o "ADN de Leão" ao vivo, no Coliseu de Lisboa. Eu adorei, aquilo não é stand-up. Adorei, mas também estava muito angustiado. Nesse mês emagreci seis, sete quilos. Eu sofro muito. De ansiedade, intestinalmente. Mas depois gostei bué. Acabei aquilo e disse: "Tenho de fazer um solo." Acho que correu muito bem para a minha expetativa. Imagina, há um diálogo que eu tenho com a Luísa no segundo episódio, em que digo que tenho uma desculpa ensaiada para o caso de ter de fugir de palco: dizer que me caiu uma lente. Isto é uma coisa que tenho mesmo ensaiada. E curiosamente na ante-estreia caiu-me uma lente. Teve bué graça, eu entrei em palco e caiu-me mesmo uma lente. Aquilo nunca me tinha acontecido. Foi incrível. Mas eu ia para o "ADN de Leão" ao vivo a achar que a certa altura tinha de pedir desculpa e dizer que tinha de ir à casa de banho porque me caiu uma lente, só para simular. Foi um ataque de pânico e tive de fugir. E depois as coisas correm bem. Tenho de chegar a casa e escrever para me lembrar, ou então esqueço-me. "Isto correu bem. Conseguiste." No meu diáriozinho escrevo que correu bem. Apesar do processo de fazer a série ter sido uma tareia também, tiro mais partido desse processo.
Gustavo Carvalho entrevista pessoas para quem a comédia é paixão e profissão. Por vezes abre a porta a conversas sobre outros temas culturais que o entusiasmam, seja sobre teatro, música, digital, televisão ou cinema. A comédia, a arte e a cultura que estão para acontecer, todas as terças-feiras no Humor À Primeira Vista. Oiça aqui mais episódios: