A questão vai ser levantada pela própria investigadora, professora associada do Departamento de Direito Penal e Criminologia da Universidade de Maastricht, nos Países Baixos, numa intervenção no âmbito da Escola de Verão do Museu Gulbenkian, "Museus, Democracia e Cidadania", a decorrer na próxima semana, nos dias 25 a 27 de setembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Em 2020, foram apreendidos a nível mundial 850 mil artefactos culturais traficados, dos quais mais de metade na Europa, segundo dados fornecidos pela Interpol - Organização Internacional de Polícia Criminal, citados numa comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu sobre o plano de ação da União Europeia para combater esta atividade criminosa.
Nesta comunicação da Comissão Europeia, refere-se ainda que a operação mundial Pandora, lançada em 2016 com o apoio da Interpol e da Europol, recuperou já 147 mil bens culturais.
"Estes dados deixam transparecer um problema mais vasto, uma vez que um grande número de casos não é detetado, sendo provável que a dimensão real do tráfico de bens culturais seja muito maior", alertava a Comissão Europeia nesse documento.
O que deveriam as autoridades e os organismos oficiais fazer mais para combater este flagelo?, "Sinceramente, acho que a chave está provavelmente na reformulação dos pressupostos e no foco [das autoridades]. De facto, hoje em dia, temos de nos concentrar mais nos aspetos financeiros destes crimes, e nos novos crimes financeiros e noutros relacionados com objetos culturais", respondeu Donna Yates à agência Lusa, numa troca de perguntas e respostas por correio eletrónico.
"Não quero com isto dizer que o tráfico não acontece, mas se apenas falarmos e nos concentrarmos no tráfico, é provável que nos escapem todos os tipos de comportamentos estranhos e até criminosos relacionados com objetos culturais", sustentou a investigadora.
Sobre a gravidade do roubo e tráfico de bens culturais, nomeadamente em museus públicos de renome, como os casos conhecidos recentemente do Louvre e do Museu Britânico, Donna Yates considera que "os organismos oficiais estão a imaginar um problema de há 20 ou 30 anos, em vez de pensarem no presente ou no futuro do crime contra o património".
"O escândalo do Louvre e o recente escândalo do Museu Britânico são duas coisas muito diferentes. De facto, o Museu Britânico foi 'roubado', e foi um trabalho interno. O caso do Louvre é bastante vergonhoso, mas não me parece que os organismos oficiais estejam a fazer vista grossa. De facto, penso que há muita publicidade sobre esta questão", comentou a especialista cujo trabalho de campo inclui o tráfico de antiguidades na Guatemala, no Nepal e na Grécia.
Em 2022, o antigo presidente-diretor do Louvre, Jean-Luc Martinez, foi acusado pela Justiça francesa de envolvimento numa rede internacional de tráfico de antiguidades, abrangendo crimes de branqueamento de capitais e de cumplicidade em fraude, uma acusação confirmada no ano passado, quando o tribunal superior recusou o seu recurso.
Do tráfico frequente de moedas antigas ao roubo de peças de museus, o comércio ilícito de obras de arte é um flagelo de dimensão importante e impossível de avaliar na totalidade, segundo os especialistas, atingindo tanto países pobres e em situação de catástrofe natural ou conflito, como os mais desenvolvidos.
"A World Costums Organization [Organização Mundial das Alfândegas, WCO] emite, por vezes, relatórios sobre as apreensões de antiguidades, mas estes dependem de os [Estados-]membros registarem essas apreensões e as comunicarem à WCO através de um inquérito: a maioria não o faz", indicou a especialista à Lusa.
Yates recebeu várias bolsas e prémios relacionados com a investigação do comércio global de antiguidades ilícitas, incluindo financiamento do Conselho Europeu de Investigação, trabalhando como consultora especializada, e dando formação e aconselhamento a vários governos e agências.
A especialista diz não possuir dados exatos sobre apreensões e comércio global ilícito de bens culturais, "sobretudo porque os dados tendem a ser muito, muito incompletos".
"Infelizmente, todos os números que falam do valor do comércio ilícito de antiguidades são sempre 'inventados'. Não há forma de medir um comércio ilícito, e também não há forma de medir o valor de coisas que não têm preço", assegurou a especialista.
O mais recente relatório anual da Art Basel, publicado em março deste ano, apontava um valor de 65 mil milhões de dólares (cerca de 58,3 mil milhões de euros), para as vendas globais de arte, em 2023. Este valor elevado, estimado sobre transações legais, declaradas, justificou o alerta para uma inevitável atração do tráfico e uma admissível sobredimensão da ilicitude.
A comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu, datada de dezembro de 2022, abre exatamente com esse alerta: "O tráfico de bens culturais é uma atividade lucrativa para a criminalidade organizada e, em alguns casos, para partes em conflito e terroristas. Tal deve-se, em especial, ao baixo risco de deteção, ao potencial para margens elevadas e à dimensão atrativa dos mercados lícitos e ilícitos, impulsionados por uma procura mundial estável ou crescente por parte de colecionadores, investidores e museus".
Em 2022, o Basel Institute on Governance editou um "guia rápido" sobre "as características únicas do mercado da arte que o tornam vulnerável" a operações ilícitas e criminosas, como branqueamento de capitais, evasão fiscal e fuga a penas e sanções, a começar pela dimensão financeira. Propunha igualmente medidas "para prevenir e combater o abuso do setor para fins ilícitos", levando mais longe as conclusões do dossier "Basel Art Trade Anti-Money Laundering Principles", de 2016-2018.
A Interpol, por seu lado, possui uma base de dados de obras de arte desaparecidas, entre moedas antigas, livros, escultura e pintura, que regista atualmente 52.000 itens, segundo o sítio daquela organização internacional da polícia.
O programa da Escola de Verão do Museu Calouste Gulbenkian vai abordar os mais variados temas da atualidade museológica, como o impacto da Inteligência Artificial nos museus, novas abordagens às exposições de arte histórica, projetos de curadoria participativa, trabalho em redes colaborativas e participação digital.
*** Ana Goulão, da agência Lusa ***
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