
«A dignidade das funções de Primeiro-Ministro não é compatível com qualquer suspeição sobre a sua integridade, a sua boa conduta e, menos ainda, com a suspeita da prática de qualquer ato criminal». Foi com estas palavras que António Costa se despediu de São Bento no dia 7 de novembro de 2023, após uma série de buscas no âmbito da Operação Influencer e de um trágico parágrafo da Procuradora-Geral da República.
Até aos dias de hoje, essas mesmas buscas que abalaram o país, a única coisa que conseguiram produzir, para além da queda do governo e de terem facilitado a ida de António Costa para Bruxelas, foi um anúncio de uma estante do IKEA e um governo minoritário da AD liderado por Luís Montenegro.
Luís Montenegro não é António Costa. É precisamente por não ser António Costa que decidiu arrastar o país, o governo e o PSD para uma crise política que criou individualmente e que apenas a si diz respeito. Afinal, a empresa que está no centro desta crise, a Spinumviva, nada mais é do que uma extensão do primeiro-ministro sob a forma de sociedade comercial. Uma extensão do seu conhecimento, das suas influências e do seu networking.
O problema não se trata do passado profissional do primeiro-ministro, sendo certo que qualquer político tem o direito de ter uma carreira anterior ao exercício de funções políticas. Ninguém exige a Luís Montenegro uma pureza curricular que apenas se encontra na maternidade, mas é impossível deixar passar o facto de Luís Montenegro ter recebido avenças de várias empresas enquanto já era primeiro-ministro e do claro conflito de interesses que isso representa.
Apesar do processo ziguezagueante de discussão do Orçamento do Estado deste ano, nesta crise política, Pedro Nuno Santos foi sempre muito claro, parecendo ter aprendido com alguns erros do passado, garantindo desde o início que o PS não aprovaria nenhuma moção de censura ou moção de confiança.
A verdade é que, desde o princípio desta legislatura, o PS tem adotado uma postura bastante institucional, tendo ajudado a construir uma solução para a eleição do Presidente da Assembleia da República, tendo viabilizado o programa do governo ou o Orçamento do Estado, garantindo que o país tem a estabilidade possível num quadro parlamentar tão fragmentado.
No entanto, perante esta situação que envolve o primeiro-ministro e perante a falta de respostas, o PS não se poderia demitir do seu papel enquanto principal partido da oposição, tendo acionado o mecanismo parlamentar que obriga o Primeiro-Ministro a responder às perguntas do Parlamento: uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
O primeiro-ministro, demonstrando receio da Comissão Parlamentar de Inquérito, decidiu que era a melhor altura para forçar eleições, fazendo um plebiscito ao seu caráter e à sua integridade, e acabando mesmo por demonstrar, em entrevista à TVI, que dentro do seu próprio partido existe uma dualidade de critérios. Se Montenegro for constituído arguido, será candidato, se qualquer outra pessoa for suspeita de ter cometido algum ilícito, terá de sair das listas de deputados. No fundo, para o PSD atual, um arguido serve perfeitamente para ser primeiro-ministro, mas não serve para ser deputado.
Como é que a maioria do partido reage a isto? Atirando-se de mão dada com o seu líder para umas eleições e para uma campanha onde a sua conduta será julgada pelos portugueses, apresenta-se como uma massa acrítica, controlada por um aparelho partidário que se instalou confortavelmente nos cargos de nomeação do Estado e dos quais não quer sair.
O Presidente da República também não está isento de culpas nesta crise. Politicamente fragilizado desde o caso das gémeas, está refém do seu entendimento constitucional acerca da dissolução da Assembleia da República. Em 2021, perante o chumbo do Orçamento do Estado para 2022, decidiu dissolver o Parlamento, confirmando a morte dos entendimentos à esquerda. Em 2023, dissolveu uma Assembleia onde o PS era maioritário porque considerou, de forma criativa, que essa maioria era única e exclusivamente uma vitória de António Costa. Em 2025, ao que tudo indica, Marcelo irá dissolver uma vez mais o Parlamento perante o chumbo de uma moção de confiança apresentada pelo governo.
Marcelo está refém da sua leitura acerca do normal funcionamento das instituições e o país está refém da pulsão dissolvente do Presidente da República que, em vez de procurar um entendimento entre os partidos para a formação de um novo governo, acha por bem que o país vá para a sua terceira eleição legislativa desde 2022.
No meio de tudo isto, a minha certeza é apenas uma: Luís Montenegro não é António Costa, caso contrário, saberia que «A dignidade das funções de Primeiro-Ministro não é compatível com qualquer suspeição sobre a sua integridade» e teria apresentado a demissão.