
Provavelmente já ouviu a frase: “Não é o que dizes, é como dizes”. Agora a ciência vem confirmar essa ideia de que a entoação importa. Um estudo da Escola de Comunicação da Universidade Northwestern, em colaboração com as universidades de Pittsburgh e de Wisconsin-Madison, revela que uma região do cérebro, há muito conhecida pelo processamento auditivo, desempenha um papel crucial na interpretação da fala.
A investigação, publicada a 3 de março na revista Nature Communications, descobriu que o córtex auditivo primário (ou circunvolução de Heschl), uma área tradicionalmente associada à perceção de sons, vai além desse papel. Este estudo demonstra que essa região converte variações subtis de tom — conhecidas como prosódia — em informação linguística significativa, ajudando-nos a compreender a ênfase, a intenção e o foco numa conversa.
Durante anos, acreditava-se que a prosódia era processada essencialmente na circunvolução temporal superior, uma área já reconhecida pela sua função na perceção da fala. No entanto, as novas descobertas desafiam essa visão.
“Os resultados redefinem a nossa compreensão da perceção da fala. Passámos décadas a estudar como o cérebro interpreta os sons da linguagem, mas este é o primeiro estudo a analisar como variações subtis no tom, que também carregam significado, também são processadas no cérebro ”, explicou Bharath Chandrasekaran , investigador e professor do Departamento de Ciências e Distúrbios da Comunicação Roxelyn e Richard Pepper da Northwestern .
Um estudo raro com doentes em neurocirurgia
Para obter estas conclusões, Chandrasekaran fez uma parceria com Taylor Abel, chefe de neurocirurgia pediátrica da Universidade de Pittsburgh. Juntos, analisaram o processamento auditivo em 11 adolescentes que estavam a receber tratamento neurocirúrgico para epilepsia grave.
Esses pacientes tinham elétrodos implantados no córtex cerebral, permitindo um registo de atividade cerebral de alta precisão — algo impossível com as técnicas não invasivas habitualmente usadas em estudos sobre comunicação.
“Esta colaboração entre neurocirurgiões e neurocientistas permitiu-nos recolher dados de atividade cerebral de qualidade excecional e compreender os mecanismos cerebrais do processamento da fala de uma forma completamente nova”, explicou Abel.
Para testar como o cérebro decifra a melodia da fala, os investigadores monitorizaram os participantes enquanto ouviam uma gravação do audiolivro Alice no País das Maravilhas.
Como o cérebro processa a entoação
Os investigadores observaram que a circunvolução de Heschl não só processa as variações de tom como som, mas também as transforma em unidades linguísticas significativas. O cérebro separa os acentos tonais dos restantes sons das palavras, criando representações estáveis dessas variações.
“O nosso estudo desafia suposições antigas sobre como o cérebro percebe a melodia natural da fala. Mesmo que a entoação varie sempre que falamos, o cérebro mantém padrões consistentes para a compreender”, explicou G. Nike Gnanataja , investigador do Departamento de Ciências e Distúrbios da Comunicação na Universidade de Wisconsin-Madison.
A investigação também revelou que essa camada oculta de significado — transportada pela prosódia — é processada muito mais cedo no cérebro do que se pensava.
Experiências semelhantes feitas com primatas não humanos mostraram que, embora os seus cérebros processem os mesmos sinais acústicos, não conseguem compreender a estrutura melódica e rítmica da fala da mesma forma que os humanos.
Implicações para a comunicação e a tecnologia
Ao compreender melhor como o cérebro processa a entoação, a equipa de Chandrasekaran acredita que a descoberta pode ter impactos em vários campos.
“As nossas descobertas podem transformar a reabilitação da fala , melhorar os assistentes de voz com IA e aprofundar a nossa compreensão do que torna a comunicação humana única”, afirmou o investigador.
A pesquisa pode abrir caminho para novas estratégias de tratamento para perturbações da fala e da linguagem, incluindo o autismo, as dificuldades resultantes de acidentes vasculares cerebrais e outras condições que afetam a prosódia.
Além disso, os resultados poderão contribuir para o avanço dos sistemas de reconhecimento de voz, ajudando a inteligência artificial a interpretar melhor a entoação e o significado da fala humana, aproximando-se da nossa perceção natural da linguagem.