Uma vez visitado o Kumbum, dirigimo-nos até ao dzong, mas encontramo-lo fechado. Não tardou que um homenzinho se aproximasse, de passo apressado, com uma chave na mão e exigindo-nos uma quantia exagerada para podermos aceder à muralha.

Acedemos, contrariados, mas valeu a pena o que pagámos.

Caminhar no cimo do muro ocre que rodeia o Kumbum e o Palkhor foi uma aventura para os sentidos. A paisagem circundante modificava-se radicalmente consoante o ponto de observação e a massa rochosa onde assenta a muralha parecia-me um emaranhado de grossos veios de granito, alongando-se no dorso de um ser imaginário.

A assinalar o topo da muralha estava um chorten, decorado com bandeiras oratórias e ramos de árvores, de onde pudemos observar o centro da cidade e espraiar o olhar os campos de cevada e as colinas em redor.

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Um formigueiro humano

A meio da manhã, o burgo intramuros transformara-se um formigueiro humano em progressão por entre uma teia de casario branco de típica cultura tibetana. Da rua principal partiam, em todas as direções, vielas sinuosas que desapareciam entre as habitações de teto plano, sobrepostas, com suásticas pintadas nas portas e cornos de iaque gravados com mantras, devidamente ordenados nas ombreiras das janelas.

Equipas de homens e mulheres pavimentavam a rua principal. Ao ritmo de cantos de trabalho – na melhor tradição himalaica – atiravam pazadas de cascalho e despejavam a terra e a areia que ia chegando em pequenos tratores, os chamados tuk tuks.

Mais uma oportunidade soberana para fazer mais algumas gravações. Eles tinham uma forma curiosa de manejar as pás, que era, de resto, prática corrente noutras partes da Ásia e que consistia em atar cordas em volta do cabo desses utensílios para que outras pessoas, para além de quem os empunhava, ajudassem ao movimento, minimizando assim o esforço despendido.

Desta forma, conseguiam atingir um ritmo de trabalho impressionante e a alegria com que o faziam justificava plenamente o provérbio “quem trabalha por gosto não cansa”.

Descemos até à cidade. Sentadas num amontoado de cascalho, gozando da pausa para o almoço, um grupo de mulheres convidou-nos a partilhar do seu farnel, acomodado em pequenos cestos de vime quadrangulares que encaixavam uns nos outros.

Continham pão caseiro, queijo seco adocicado e doces fritos. De sacolas feitas de pano grosseiro, tiraram pequenas tigelas de cerâmica, nas quais nos serviram tsampa retirada às mãos cheias de bolsas de algodão, chang, guardado em bidões de plástico, e chá com manteiga, que saía, ainda bem quente, das garrafas termos.

Mesmo ao lado, as suas montadas, mulas dóceis e resistentes, pareciam participar no festim. Os chocalhos denunciavam-lhe os movimentos sempre que rebuscavam os sacos com palha que traziam atados ao pescoço.

Um momento que não se esquece facilmente

Passar uma tarde numa das boticas locais especializadas em tupka (sopa à base de massa e carne) e cerveja do planalto, é um momento que não se esquece facilmente. Na principal botica da cidade, estavam camponeses das povoações vizinhas e nómadas vindos de toda a parte, a beber e a tratar de negócios. Vestiam calças e casacos de algodão, nos seus pulsos tilintavam manilhas de prata e nas orelhas balançavam os sempre vistosos brincos.

Quando entrámos no estabelecimento, cumprimentaram-nos como faziam com os raros estrangeiros que iam tendo a oportunidade de ver, com um inocente “bye, bye”.

No pátio interior, um velho de faces rosadas, acocorado num banco de plástico com uma chaleira de chang à sua frente, aproveitava o sol quente antes que este se desvanecesse no horizonte. O velho sorvia o líquido em pequenos goles e, de vez em quando, misturava-o com punhados de tsampa. No chão, estendidos a secar, estavam os grãos de cevada fermentada utilizados na confeção da bebida.

Existia outrora, na encosta norte, uma cidade monástica, composta por um conjunto de sessenta mosteiros, habitados por milhares de monges. Visto ao longe, o trilho que conduz a uma gompa sobrevivente, era um simples traço, ligeiramente mais claro num cenário de aridez cinzenta percorrido pelos passos dos nómadas e das suas manadas de iaques peludos que puxavam carroças com estardalhaço – o único ruído a competir com o murmúrio do vento.

Era a respiração, ofegante, que nos servia de altímetro

Enveredámos, encosta acima, por um terreno pedregoso onde, aqui e ali, apesar de tudo, se viam minúsculos arbustos. Em tempos, tudo isto foi um imenso glaciar, cujo rasto orográfico era ainda visível e podia ser seguido até aos contrafortes da cadeia montanhosa situada a leste da cidade.

O facto de nos encontrarmos a uma altitude considerável, impedia-nos de notar as diferenças de elevação. Era a respiração, ofegante, que nos servia de altímetro.

Passámos por um monge que dava de comer a um bando de cães, presença comum, mas nem sempre desejável. Dir-se-ia que os animais o tinham como companheiro predileto, pois o religioso esperou, pacientemente, que eles saciassem a fome e só depois seguiu o seu caminho.

Em breve surgiram os escombros estratificados na encosta da montanha, como num cenário de guerra.

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A julgar pelo aspeto desolador, parecia improvável que alguém vivesse naquelas redondezas, e, no entanto, depois de subirmos durante mais alguns minutos, vislumbrámos uma pequena gompa, encavalitada num rochedo escarpado, como é comum a estes eremitérios de montanha.

O ladrar dos cães denunciou a nossa presença. Debaixo de um toldo, sentados de perna cruzada num tapete de feltro, estavam alguns homens a jogar aos dados, um jogo bastante popular entre os tibetanos, ao mesmo tempo que comiam, bebiam e discutiam ruidosamente. Um monge de meia-idade veio ao nosso encontro e convidou-nos a entrar.

Toda a parede da sala principal – permanentemente mantida na obscuridade – estava pintada com murais de inspiração religiosa. No centro da sala, próximo das quatro colunas que sustentavam o teto, estavam alinhados os estrados almofadados onde, várias vezes ao dia, os monges se sentavam para rezar ou realizar qualquer outro tipo de ritual.

O chá com manteiga

Em frente a cada um dos estrados estava uma pequena mesa, quase rasa ao solo, destinada à tigela para o chá com manteiga. Esta bebida é servida ininterruptamente no decorrer das funções religiosas, que chegam a demorar várias horas.

Já o nosso pioneiro jesuíta em terras himalaicas, António de Andrade, notara que os monges “bebem muito o seu chá, como nos outros dias, e dão por razão que o beber do chá muitas vezes é coisas muito agradável a Deus, porque com ele se lhe fazem as línguas mais expeditas e prontas a rezar”.

Pousados ao lado da mesinha estavam os instrumentos musicais – bombos, tambores, cornetas, sininhos e sinetas – utilizados em determinados momentos da recitação dos mantras.

Por todo o lado, ardiam velas que iluminavam vagamente as estatuetas de deuses e avatares colocados nos altares e pedestais, juntamente com as suas réplicas feitas de uma pasta de manteiga e tsampa, para além de retratos emoldurados de lamas importantes e de alguns santos.

Na cozinha, preparava-se o jantar.

Os monges que cumprem rigorosamente os preceitos budistas, não ingerem qualquer alimento depois do pôr-do-sol.

Dois noviços atarefavam-se em redor de enormes potes de ferro de três pés, exatamente iguais aos das aldeias portuguesas, e bacias de alumínio, enquanto um monge mais velho avivava o lume da fornalha com a ajuda de um fole de couro, com as extremidades em cobre, tão grande que, para o fazer, tinha de se pôr em cima dele.

Entretanto, um seu companheiro atirava para o lume pedaços de esterco de iaque bem seco.

Insistiram para que bebêssemos o chá de manteiga da hospitalidade. Não nos fizemos rogados e bebemos até à saciedade, o que nos deixou quase jantados pois este chá é altamente nutritivo.

O fascínio e o mistério nas cozinhas dos mosteiros

Há qualquer coisa de fascinante e misterioso nas cozinhas dos mosteiros lamaístas, permanentemente mergulhadas na obscuridade. A única luz desta cozinha entrava por orifícios estrategicamente colocados no teto que, ao longo do dia, iam alumiando pequenas porções do chão térreo da divisão.

Encostados a um canto, amontoavam-se vários sacos de serapilheira cheios de farinha de cevada, a contribuição dos camponeses e peregrinos que permitia a subsistência dos cinco religiosos ali residentes. Como me pareciam distantes, e até injustas, as considerações de António de Andrade, que acusava os monges de usarem “de mil traças e modos para viverem à larga, como vivem, sustentando-se do trabalho de outra gente”.

É certo que os tempos eram outros e que a classe monástica era, então, a classe mais respeitada, detentora absoluta do saber, sempre influente nas decisões políticas dos rajás, logo, o único entrave à fúria evangelizadora do jesuíta. Não é de admirar que fossem quase sempre de carácter pejorativo as apreciações de Andrade no que respeitava a assuntos de monges.

A luz “mágica”

Habituados ao lusco-fusco do interior do mosteiro fomos fulminados, à saída, por um clarão intenso e um céu azul como só há no Teto do Mundo. Era a magnífica luz de fim de tarde, a que os fotógrafos gostam de chamar “luz mágica”. Mas apesar do esplendor daquele fim de tarde, foi praticamente às escuras que fizemos o caminho de regresso à cidade, “orientados” pelo canto dos trabalhadores músicos que continuavam a jorna, apesar da noite já instalada.

Jantámos na botica tibetana, só que desta vez não conseguimos evitar um grupo de ébrios que nos “obrigaram” a beber os três copos de chang da praxe. E depois dos primeiros foram outros três, e por aí adiante.

Na cultura tibetana o número 3 é auspicioso, pois representa a trindade de Buda, Dahrama e Sangha, pelo que os bidões de chang estavam condenados a ficar vazios essa noite, muito graças à nossa contribuição.

Quando chegamos ao hotel, encontrámos uma outra festa a decorrer. Também ali se divertiam, bebendo, cantando, dançando, no fundo, a melhor forma de preencher as longas noites do planalto.

Aproveitámos a manhã para visitar o templo de Palkhor. Assim que chegámos ao átrio da entrada principal, o monge que fazia de porteiro, e que estava distraído a falar com um colega numa repartição ali próxima, veio a correr como um doido, e pôs-se à nossa frente, entre a porta e o pátio, estático com um daqueles soldados que parecem ter um espanador na cabeça e que fazem a guarda ao palácio da família real inglesa.

Exigia que pagássemos a entrada, apesar de não ter qualquer comprovativo para nos entregar.

Nas paredes do Palkhor tivemos a oportunidade de apreciar admiráveis frescos que representavam sobretudo cenas da vida de Buda, apresentadas aos quadradinhos, como numa banda desenhada.

A revestir os frescos havia uma espécie de película brilhante, como se tivessem sido envernizados depois de pintados. O brilho significava que a pintura aplicada era recente, exatamente por cima dos desenhos antigos – alguns com muitas centenas de anos –, linha a linha, seguindo todos os seus padrões ao mais ínfimo pormenor. E nas pinturas budistas não faltam ínfimos pormenores.

Era assim que se recuperavam os tesouros artísticos – com um perfeccionismo quase religioso, obra saída das mãos de verdadeiros artistas. À exceção dos padrões decorativos, as pinturas que encontrámos nas capelas, mosteiros ou nas tangkas abordam sempre a temática budista: mandalas, divindades do panteão tântrico, entidades protetoras e lamas venerados.

Também as esculturas são quase exclusivamente devocionais na sua natureza, sejam elas estatuetas de poucos centímetros ou estátuas de vários metros.

Sair da cidade à boleia

Para partir da cidade, na ausência de um transporte público regular, só nos restava a boleia, pelo que decidimos tentar a nossa sorte junto a uma ponte de madeira, a cerca de dois quilómetros da cidade.

Para enganar as horas, dei início às minhas habituais sessões de malabarismo, recorrendo a seixos e paus que fui encontrando pelo caminho.

Durante toda a manhã, apenas passaram por nós carroças e velhos montados em jumentos. Pouco depois do meio-dia surgiu, finalmente, uma camioneta que parecia ter sido enviada diretamente pelo Buda.

Transportava peregrinos que nos ofereceram boleia com a maior das boas vontades. O veículo seguiu em direção ao sul, para virar para oeste uns quilómetros mais à frente, numa bifurcação que, vista de cima, certamente faria lembrar a ponta de um anzol.

E ali estávamos nós agora, dois outros portugueses, alvo da curiosidade de todos os passageiros, sobretudo de uma monja e uma mulher muito bonita com uma criança ao colo que a acompanhava. Pareciam ser irmãs.

Uma e outra recorriam com alguma frequência ao rapé, guardado em minúsculos sacos de plástico. Colocavam esse pó verde, importado de Madras, em cima do punho, um pouco abaixo do polegar, aproximavam-no do nariz e, depois, inspiravam com toda a força, uma operação que, com a camioneta em andamento, requeria, certamente, alguma destreza e muita concentração.

Duas mulheres com chapéus brancos que lhes davam um ar citadino

Do grupo de peregrinos, destacavam-se duas outras mulheres com chapéus brancos que lhes davam um ar citadino. Deviam ser as mais abastadas e, por isso, tinham direito aos lugares da frente. Eram também as que mais falavam e as que se atreviam a mandar piadas, ao contrário das mais idosas, que se mantinham caladas e quietas, sentadas nos assentos de trás.

Após meia hora de viagem, parámos numa aldeia. Para celebrar a chegada, os peregrinos, mal se apearam do veículo, rebentaram um panchão e soltaram uma série de gritos estridentes. Presumi que este fosse um lugar importante na sua peregrinação.

No topo das colinas mais próximas avistavam-se ruínas de mosteiros.

Acompanhámos os nossos companheiros de viagem até ao interior do único edifício já recuperado; impressionou-me a forma como, apesar das obras recentes, se respirava ali uma atmosfera ancestral, como se aquelas paredes tivessem recebido, ao longo de centenas de anos, o fumo das lamparinas de incenso que nos templos ardem dia e noite, sem parar. Era um bom sinal de que os trabalhos de restauro tinham respeitado a tradição.

Imitando os tibetanos, vertemos ghee e acendemos uma série de velas e iluminarias. O ghee é um óleo vegetal muito utilizado pelos devotos hindus do Nepal e da Índia, pois estão proibidos de aproveitar qualquer parte dos animais bovinos, considerados sagrados.

A substituição do ghee pela manteiga de iaque, como combustível para os atos de devoção, que naquele contexto tinha um não sei o quê de modernidade, fora, muito provavelmente, ideia das mulheres de chapéu branco.

Os poucos monges ali residentes ficaram bastante satisfeitos com a nossa passagem, bem como os cães vadios, que assim tiveram algo mais para comer. Particularmente ativos, os bandos de miúdos com um aspeto muito pobre que nos rodeavam, pediam-nos esmola.

Deixar amolecer na boca o ‘queijo pedra’ é um excelente, e saudável, sucedâneo da pastilha elástica. Ajudou-nos a passar as horas, numa altura em que a tarde ia dando lugar à noite e o vento entrava pelas frinchas da camioneta, tornando desagradável o que até então fora moderado, por vezes doce.

Os vidros da camioneta, por onde observava os campos e as medas de feno que me tinham surpreendido desde que pusera os pés no planalto, trepidavam como se fossem partir a qualquer momento.

O canto das mulheres na faina agrícola chegava-nos, de longe, trazido pelo vento, sempre que fazíamos uma das muitas paragens, por esta ou aquela razão, em que aproveitávamos para esticar as pernas, algo de imprescindível ao cabo de algumas horas de viagem.