A campanha presidencial americana está a bater todos os recordes de investimento em campanhas publicitárias. Há anúncios dirigidos a públicos cada vez mais específicos. Mas nenhum provocou tanto furor como o que a campanha de Harris dirigiu às mulheres que vivem com homens republicanos.

O anúncio tem menos de 40 segundos e é narrado por Júlia Roberts. Em rigor, aprofunda a principal linha da campanha de Kamala Harris das últimas semanas: apelar às mulheres - que todas as sondagens confirmam que estão muito mais com a campanha da democrata, sobretudo por causa do tema da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) - que defendam os seus direitos. O que este anúncio faz é levar essa linha de campanha a um "público" muito mais específico, as mulheres que têm maridos ou namorados pró-Trump, lembrando-lhes que não lhes têm que contar em quem votaram ou que podem votar em Kamala Harris mantendo a ideia de que votaram em Trump.


O anúncio não surgiu por acaso. A campanha de Harris tem tido sinais de que as mulheres republicanas mais ligadas aos temas clássicos do partidos - e menos propensas a gostarem da retórica e do estilo de Trump - estão dispostas a votar no Partido Democrata, tal como fizeram em novembro de 2022, nas "midterms" (eleições intercalares para o Congresso), onde o tema do aborto derrotou muitos candidatos que contavam com o apoio direto de Trump.

A decisão do Supremo Tribunal Americano de reverter a célebre doutrina Roe vs Wade - que considerava o aborto um direito federal e não de cada Estado - tem sido uma das forças mais determinantes da política americana nos últimos anos. Vários Estados republicanos avançaram com leis altamente restritivas, que na prática proíbem o aborto em quase todas as circunstâncias. Noutros estados, os eleitores derrotaram tentativas de impor legislação mais apertada por via de referendos. E na próxima terça-feira há vários Estados onde também se vota sobre sobre a IVG, com tentativas de impedir o Estados de poderem ter políticas proibitivas.

Em todos os comícios, entrevistas ou anúncios, Kamala Harris fala neste tema. A sua campanha das últimas semanas gira apenas entre o tema do aborto - sobretudo, no facto de as mulheres não poderem abdicar dos seus direitos - e o da defesa da democracia. Ainda ontem, numa curta aparição no Saturday Night Live, lembrou isso. E vai fazê-lo em todos os comícios e anúncios até ao fim da campanha.

Ontem, Donald Trump esteve no Fox & Friends, o popular show matinal da cadeia conservadora, e criticou Julia Roberts, atacando o anúncio e dizendo que ela se ia arrepender de o ter feito. A principal crítica de Trump assentou na ideia de que Roberts estaria a provocar divisões nos casais, o que não era aceitável. Jesse Waters, um dos mais populares apresentadores da FOX disse mesmo que o anúncio era mais grave do que um apelo ao adultério. Vários comentadores da FOX sublinharam que as suas relações nunca poderiam sobreviver a uma "traição" dessa natureza.

Como é hábito nos Estados Unidos, o anúncio não foi pago diretamente pela campanha de Harris, mas pela organização Vote Common Good, que se dedica a tentar que eleitores evangélicos e católicos se afastem de Trump e votem em Harris para salvar a democracia. Ora isso ainda provocou mais polémica, porque explora valores morais e de confiança entre casais. Mas o efeito imediato é absolutamente indiscutível.

Há um outro anúncio idêntico, narrado por George Clooney, que tem como alvo grupos de homens que são pró-Trump, apontando a quem queira votar Harris sem pôr em causa a amizade. A ideia é a mesma, mas o efeito é seguramente menor. A campanha de Trump tem uma penetração muito maior nos homens, sendo que essa vantagem se alarga nas camadas mais jovens, os eleitores abaixo dos 35 anos, onde a diferença entre o voto masculino e feminino se está a acentuar de uma forma inédita na história da política americana.