No momento de escrita deste texto, o cessar-fogo, tão esperado, entre Israel e o Hamas, entrou em vigor há pouco mais de uma hora e meia. Depois de três horas de incerteza e angústia, motivadas pelo atraso na implementação do acordo devido ao descumprimento por parte do Hamas da divulgação da lista de reféns israelitas a serem libertados, finalmente pudemos ouvir o silêncio das armas e o som da esperança por parte das famílias de reféns e da população em Gaza. Três minutos antes da entrada em vigor do acordo, a jornalista da Al-Jazeera, Hind Khoudary, não conseguiu segurar um grande sorriso e uma expressão de claro alívio quando foi informada em direto de que a implementação do cessar-fogo era agora uma informação oficial. Sem palavras, Hind lembrou o desespero dos últimos meses, a incerteza e o medo constantes, a luta pela sobrevivência - que também tem sido sua -, e disse apenas: “É isto. Cessar-fogo!”.
A notícia foi acompanhada de imediato por imensa cobertura jornalística em todo o mundo, com foco na entrada da ajuda humanitária tão necessária para o povo palestiniano e na tão esperada libertação de reféns, há 15 meses em cativeiro em condições indescritíveis e longe das suas famílias. Contudo, pouco se tem falado dos prisioneiros palestinianos que serão também libertados, muitos dos quais crianças que, apenas por um tique Orwelliano de novilíngua, não recebem uma mais correta designação. Claro está que este é um momento agridoce, para ambos os lados. Não é fácil celebrar depois de 15 meses de uma guerra que desafiou todos os preceitos do direito internacional humanitário, e sem qualquer certeza de que este é mesmo o seu fim. E para as famílias dos quase cem reféns que ainda estão em Gaza, em torno de um terço destes dados como mortos, a primeira fase deste acordo é ainda insuficiente, para dizer o mínimo, visto que prevê apenas a libertação de 33 destes indivíduos, sem garantias de vida.
Isso mesmo ficou claro no discurso proferido no dia de ontem pelo primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que afirma que terá recebido garantias tanto do presidente norte-americano cessante, Joe Biden, quanto do próximo inquilino da Casa Branca, a tomar posse amanhã, Donald Trump, de que Israel tem o direito de retomar as hostilidades caso conclua que a segunda fase de negociações é ineficaz. De acordo com as suas declarações, neste momento estamos a assistir apenas a uma trégua temporária na guerra. Evidência da falta de boa vontade negocial por parte de Israel é também o anúncio de concretização da demissão do Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, que promete não causar para já uma crise no governo de coligação que o seu partido da extrema-direita radical israelita tem suportado, garantindo que retorna ao governo no prazo de seis semanas, caso Bibi cumpra a promessa de reativação da guerra em larga escala. Juntamente com o Ministro das Finanças, Bezalel Smotritch, Ben-Gvir representa uma ala da sociedade israelita que defende abertamente e sem vergonhas a anexação de todos os territórios palestinianos ilegalmente ocupados por Israel e a eliminação, seja pela via do deslocamento forçado ou do genocídio, da população palestiniana que vive nesta região. Como disse o antigo Ministro da Defesa, Yoav Gallant, garantindo-lhe um mandado de captura pelo Tribunal Penal Internacional, os palestinianos são “animais humanos”.
E neste contexto, temos que nos perguntar: quanto vale uma vida? Porque se devemos certamente lembrar a história das jovens Romi Gonen, de 24 anos, que foi apanhada de surpresa quando participava do festival de música Super Nova, de Emily Damari, de 28 anos, cidadã britânica que terá imigrado para Israel quando tinha 20 anos, e de Doron Steinbrecher, médica veterinária de 31 anos, com uma doença hormonal crónica que obriga a que tome medicação diária que dificilmente estará disponível na Faixa de Gaza, que – esperemos – vão hoje finalmente sair de um cruel cativeiro e reencontrar as suas famílias depois de tanto tempo de vida perdida, de injustiça, de medo e, quiçá, de maus-tratos e tortura, também não nos podemos esquecer da massa de palestinianos que vão hoje também rever os seus entes queridos. Não nos deixemos cair na esparrela dos radicais, que querem que acreditemos que todos os palestinianos são terroristas e merecem ou provocaram, de uma forma ou de outra, a desgraça - acrescida - que lhes caiu sobre a cabeça depois de 7 de outubro de 2023.
Procuremos falar e saber também das histórias de Khalida Jarrar, prisioneira política de 61 anos, em detenção administrativa pelo menos pela quinta vez, que deverá ser libertada hoje depois de passar os últimos seis meses em confinamento solitário numa cela de 2,0m x 1,5m, sem contacto com a família e em condições sub-humanas. Falemos de Marwan Barghouti, líder político da Fatah, muitas vezes referido como o “Mandela Palestiniano”, cuja condenação por envolvimento em atos de terrorismo sempre negou, e que está preso há 23 anos com restrições de comunicação, momentos prolongados de confinamento solitário, e com acesso limitado a apoio jurídico e visitas da sua família. Não nos esqueçamos do médico ortopedista Adnan al-Bursh, outrora diretor do hospital Al-Shifa em Gaza, cuja morte em abril de 2024, enquanto estava sob a custódia do exército israelita, após ter sido preso por suspeita – nunca publicamente comprovada - de colaboração com o Hamas, chocou o mundo devido às fotos que circularam do seu cadáver e dos relatos de que terá sido submetido a extrema tortura e abuso sexual durante a sua estadia na prisão. Este caso, como tantos outros, é tratado por Israel em segredo de Estado, visto que o argumento da ameaça à segurança nacional tem sido aceite historicamente para que esta e outras democracias liberais pelo mundo apliquem estados de exceção e suspensão da normalidade jurídica sem que investigações internacionais independentes possam ser colocadas em marcha para comprovar a veracidades destas e outras tantas acusações.
Mas, mais importante, lembremos que o número de palestinianos detidos em prisões israelitas ascende a 10,400, sem contar os que foram detidos depois dos ataques terroristas do Hamas de 2023. Lembremos que, destes, mais de 650 serão crianças da Cisjordânia e outras tantas que sequer conseguimos estimar terão sido levadas de Gaza para Israel depois do início da guerra, de acordo com a reputada organização não-governamental internacional Save the Children. De acordo com esta organização, historicamente se tem verificado a detenção de 500 a 700 crianças por ano por parte do exército de Israel, número que, acredita-se, terá sido superado no último ano com 460 detidas apenas nos primeiros cinco meses de guerra. Estas crianças são separadas dos seus pais, submetidas a situações de horror e medo, maus-tratos e incerteza, incentivadas a assinarem confissões em hebraico para poderem voltar a ver os seus pais, muitas vezes por terem cometido o crime extremo de atirar uma pedra contra um tanque de guerra.
Volto a perguntar: quanto vale uma vida? A desgraça quase centenária dos palestinianos ficou, por grande fadiga gerada pelo que costumamos chamar de um conflito prolongado, muito longe dos holofotes dos media durante a última década. Hoje todos sabem que a impunidade do extremismo crescente da política israelita – não confundir isto nem com os cidadãos do Estado de Israel, também eles vítimas do medo, nem com as comunidades judaicas pelo mundo – não encontra limites. É, portanto, mais do que tempo de começarmos a equiparar o valor da vida humana. A vida de um israelita é preciosa. Cada refém que está em Gaza, cada homem e cada mulher, cada criança e cada idoso que foram chacinados no dia 7 de outubro de 2023 em Israel são o mundo inteiro de alguém. O mesmo vale para os palestinianos. Falemos das vidas e das histórias de cada um deles também.