Boom. Boom. Boom. Foi com três explosões que António acordou, por volta da 1h00 desta madrugada. Depois, soou um berro. Era a voz da mulher. Pensou que ela tivesse caído e que se tivesse magoado. Mas não. Era um grito de choque. Foi dar com ela à janela. A cena a que assistia: um autocarro em chamas, na rua onde vivem há mais de três décadas. Lá de dentro saía o motorista, com “os braços a arder”.

Dez horas depois, o cheiro a queimado ainda é intenso, na Rua Guerra Junqueiro, em Santo António dos Cavaleiros, freguesia do concelho de Loures. O autocarro ardido já foi removido– o motorista de cerca de 40 anos, que ficou com queimaduras no rosto e no tórax, foi transportado para o hospital, em estado grave. Na rua permanecem mais três carros que foram apanhados pelas chamas. Têm fitas da proteção civil a vedá-los. O de Luís está totalmente destruído.

“Ainda tentei ir à minha carrinha, mas já não tive hipótese. Lá dentro tinha a bicicleta da minha filha, brinquedos dela, roupa, coisas do meu trabalho. Foi tudo, não sobrou nada”, relata. Estava estacionado mesmo à porta de casa. Mora aqui no prédio em frente ao qual tudo aconteceu.

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Bombeiros e polícia “chegaram tarde”

“Foi tudo muito rápido”, diz Luís. Tudo menos a atuação das autoridades.Os moradores é que auxiliaram o motorista. Ajudaram-no a tirar o casaco, que estava mesmo a arder. Só depois é que vieram os bombeiros e a polícia.”

Chegaram tarde, insiste. “Os bombeiros estão a 1,5 quilómetros. Quando ligamos a dizer que há um autocarro a arder por completo e três viaturas ao lado, acho que não há muitas perguntas a fazer. É arrancar e tratar logo do foco de incêndio. Mas não. Isso custa-me um bocadinho”, desabafa.

Mais próxima ainda está a esquadra da PSP, a cerca de 400 metros. Também não chegou a tempo.

“A polícia estava aqui ao lado, a ouvir tudo . Estavam lá todos . C usta-me a perceber o porquê de demorarem tanto. Se quisessem, tinham conseguido agir mais rápido e tinham meios para apanhar quem fez isto ."

“Quero acreditar que não são daqui”

Mas quem fez, afinal, isto? Luís não sabe. “Vi-os já ao fim da rua. Eram jovens, cerca de 20. Seguiram rua abaixo, e nunca mais ninguém os viu.

Quer, contudo, acreditar que não são desta zona. Isto porque, sublinha – ao contrário dos bairros da Cova da Moura e do Zambujal, na Amadora, onde tiveram início os protestos em resposta à morte de um homem, baleado pela polícia -, em Santo António dos Cavaleiros não há memória de violência deste tipo.

“Aqui nunca aconteceu nada assim deste género. N unca. Moro aqui desde pequenino e nunca assisti a nada disto na minha vida” , assegura.

Violência policial, garantem os moradores, também não é um problema sentido por estes lados. “Que eu saiba, não há. Nunca tivemos problemas", afirma Luís.

Os moradores acreditam, por isso, que o episódio desta madrugada não passa de efeito mimético dos acontecimentos dos últimos dias, por outros pontos da Grande Lisboa. Agora vamos ver se fica por aqui ou se continua.

MIGUEL A. LOPES/LUSA

“Dá um medo. Tomara que não se repita”

A preocupação é geral na freguesia, encarada por todos os que aqui vivem como pacífica.

“É a primeira vez que vejo algo assim aqui”, repete Kinji. Chegou da Índia para viver em Santo António dos Cavaleiros há 28 anos e há 22 que é dono da mercearia mesmo em frente ao local onde o autocarro foi incendiado, na última noite.

“A polícia está aqui bem, está tudo bem com a polícia aqui. Não há problemas. Sou indiano e nunca tive problemas”, insiste, incrédulo com a revolta que terá dado origem ao episódio de violência.

Luana, que veio do Brasil e vive em Santo António dos Cavaleiros há dois anos e meio, trabalha na mercearia. Revela-se “assustada” com tudo o que se passou.

“Dá um medo. Tomara que isso não se repita. É muito grave.”

À espera do autocarro

Para já, a vida retoma com normalidade. Equipas municipais limpam a estrada, pronta a reabrir ao trânsito, onze horas depois. Na paragem de autocarro, onde a viatura da Carris ardeu, encontramos Valdemir. Está à espera do transporte para o trabalho.

É esta a rotina de Valdemir desde há três meses, quando se mudou - ironia das ironias, daDamaia, local que tem sido outro dos focos dos tumultos nos últimos dias - para Santo António do Cavaleiros.

“Podia ter estado dentro daquele autocarro”, diz. “É por aquela hora que eu chego a casa do trabalho. "Sorte grande, na última noite, estava de folga.

Lamenta aquilo a que se tem assistido - até porque, explica, “para nós, que precisamos do autocarro para ir para o trabalho, é pena. É menos um autocarro!”

A camioneta amarela – igualzinha à que ardeu na última noite – aproxima-se, finalmente. “Campo Grande!”, lê Valdemir. “É este, vou apanhar este agora.”