O saudoso Vasco Pulido Valente costumava dizer uma frase que se tornou mote, por vezes até irónico: “O mundo está perigoso.”

A verdade é que a frase nunca foi tão atual. E tão tristemente reveladora.

Desde a Segunda Guerra Mundial que o mundo não estava tão perigoso. A tal ponto que nem faltam já observadores a assinalar preocupantes paralelos entre os dias de hoje e a dramática década de 30 do século passado que desembocou no mais sangrento conflito armado da História.

Este perigo tornou-se óbvio quando a Rússia estilhaçou um consenso que prevaleceu durante a Guerra Fria: a inviolabilidade das fronteiras desenhadas em 1945, na Conferência de Ialta (localidade na península da Crimeia, quase parecendo uma ironia em antecipação). Isto ocorreu em dois tempos: primeiro em 2014, com a ocupação e posterior anexação da Crimeia, território ucraniano à luz do direito internacional; depois (e não pode deixar de ser dito, muito derivado de uma triste condescendência da comunidade internacional), em fevereiro de 2022, com a agressão de Moscovo ao conjunto da Ucrânia. Com a intenção deliberada de a riscar do mapa. Pelo meio o regime de Vladimir Putin foi alimentando milícias no Donbass.

Vivemos agora num quadro de guerra no coração da Europa, sem a menor salvaguarda das garantias expressas em numerosos tratados internacionais, assinados pela própria Rússia. O pior exemplo vem mesmo deste país, um dos cinco com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o que lhe garante direito de veto quando os seus interesses estão em causa.

Outro paralelo preocupante com períodos históricos que julgávamos ultrapassados é o da formação do Eixo das Tiranias. Que agrega inimigos jurados da democracia liberal, do Estado de Direito e daquilo a que chamamos valores ocidentais, com alcance universal.

Eixo inaugurado por Putin logo após a invasão da Ucrânia ao estreitar relações comerciais e bélicas com a China, o Irão e a Coreia do Norte, além do seu vassalo da Bielorrússia, tornado Estado fantoche, funcionando na prática já como protetorado de Moscovo.

Preocupação suplementar: três destes países possuem bomba nuclear. E um quarto, o Irão, procura integrar este restrito “clube atómico”, com as previsíveis consequências que isto pode acarretar.

A bomba funciona como instrumento de chantagem, não só implícita, mas também explícita. O próprio Putin já fez ameaças diretas ao Ocidente, garantindo que não hesitará em recorrer a ogivas nucleares para travar qualquer opositor. É o darwinismo puro e duro na geopolítica internacional: a razão da força destrona a força da razão. Como se a Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse letra morta.

Neste quadro, crescem as ameaças na península coreana, com exercícios militares do Norte totalitário visando o Sul democrático e “capitalista”. Aumenta a violação do espaço aéreo de Taiwan pela força aérea da China continental, num presumível ensaio geral de uma invasão da ilha que se mantém imune aos comunistas desde 1949. E nos mares do Sul da China sucedem-se as provocações de navios de guerra de Pequim em águas territoriais de Estados soberanos, como as Filipinas.

O Eixo das Tiranias põe em risco quase todas as parcelas do planeta. Em diversos países africanos, como o Mali, o Níger ou o Burkina Faso, onde atuam mercenários a soldo da Rússia para vampirizar riquezas naturais e eliminar o que ali resta de influência europeia. Com muito sofrimento humano que passa ao lado de quase todos os noticiários.

O Médio Oriente é agora um barril de pólvora, com grupos terroristas armados e financiados pelo Irão declarando guerra aberta ao Ocidente a pretexto do combate ao Estado de Israel. Tem sido assim com o Hezbollah no Líbano, com o Hamas em Gaza, com os hutis no Iémen. Por detrás de todos estes conflitos, há sempre o braço de Teerão. Enquanto a teocracia iraniana reprime ao máximo o seu povo, sobretudo jovens e mulheres.

Repressão é também uma constante na Venezuela, onde o que restava da democracia foi espezinhada sem pudor por Nicolás Maduro, rosto mais visível do regime que transformou aquele que chegou a ser o mais próspero país da América Latina num dos mais pobres, apesar de possuir as maiores reservas de petróleo do hemisfério ocidental.

A escandalosa fraude eleitoral de 28 de julho confirma que a chamada “república bolivariana” decretou guerra ao seu próprio povo, com o incentivo aberto de Moscovo, o financiamento de Pequim e o apoio operacional do regime comunista de Cuba, a mais velha ditadura do mundo hispânico. Por isso cerca de oito milhões de venezuelanos vivem hoje no exílio. Fogem da miséria e da repressão num país que se tornou também presa dos cartéis da droga.

Não adianta iludir o problema: enfrentamos um cenário de confrontação global, em diversos tabuleiros. Ao falarmos de todos estes conflitos estamos a falar do mesmo. Estão interligados. Mais que os conflitos, os regimes autocráticos. Que se apoiam, operacional, material e financeiramente. O Eixo das Tiranias está muito ativo e os seus tentáculos pretendem alcançar uma nova ordem mundial onde a liberdade e democracia não serão regra.

Não há equidistância possível entre as democracias ocidentais, com todas as imperfeições, e os seus declarados inimigos, que juraram condená-las à extinção. Ninguém tenha ilusões: é o nosso modo de vida que eles odeiam e combatem. Com arsenais cada vez mais potentes. Com ambições bélicas cada vez mais desmedidas. E com alguns idiotas úteis que, do lado de cá, atuam como dóceis instrumentos deles.

O mundo, de facto, está perigoso. Saber em que lado nos colocamos é o primeiro passo no combate das ideias, que também se trava em diversos tabuleiros. Um combate sem armas letais. Mas nem por isso menos urgente.