Diz-se que Grigory Potemkin construiu aldeias falsas para impressionar Catarina, a Grande. À medida que a imperatriz russa descia o Dniepre, convencida da prosperidade das suas novas possessões no sul, via o que eram, na verdade, fachadas erguidas à pressa: casas pintadas, camponeses ensaiados, realidades encenadas. A Rússia aprendia, ali, o segredo da sua longevidade imperial: mais do que força, projeção de força; mais do que grandeza, ilusão de grandeza.

Potemkin não era apenas um cortesão enamorado da czarina. Foi um dos mais astutos estrategos do Império Russo no século XVIII: general, administrador e artífice da anexação da Crimeia. Carismático, manipulador e visionário, percebeu como poucos que o poder vive tanto da substância como da aparência. E foi precisamente essa intuição — de que as perceções moldam a realidade política — que o tornou símbolo da arte de governar pela encenação.

O Presidente russo conhece bem essa história. Não apenas porque é um estudioso da grandeza russa, mas porque é, à sua maneira, um discípulo tardio de Potemkin. O seu regime é um complexo mecanismo de ilusão imperial. Vladimir Putin não é um líder soviético. É um autocrata czarista num mundo pós-soviético. Ao contrário do que muitos imaginam, o seu projeto não é nostálgico da URSS, mas da Rússia dos Romanov.

A sua obsessão é menos a foice e o martelo e mais o trono e o cetro. O Kremlin não é, para ele, um relicário do socialismo, mas a continuação simbólica de São Petersburgo — a cidade imperial que Pedro, o Grande, cravou na história como janela da Rússia para a Europa. A sua guerra não é pelo comunismo — é pela glória.

A Rússia de Putin busca restaurar o prestígio que teve nos séculos XIX e XX — como potência determinante na geopolítica europeia, árbitro dos equilíbrios continentais, império de dimensões míticas. Um poder espiritual, militar e cultural que enfrentou Napoleão, negociou em Viena, travou o expansionismo otomano, venceu Hitler e dividiu o mundo em Ialta. Mesmo durante o caos soviético, Moscovo manteve a ilusão de estar no centro de tudo. Putin quer recuperar essa centralidade — mas sob o signo da ortodoxia russa, da autoridade unipessoal e de uma ideia de destino imperial.

O conflito na Ucrânia é, neste contexto, tudo menos uma anomalia. É o campo de batalha simbólico onde se joga a recuperação do orgulho ferido da Rússia. A Crimeia foi o ensaio. Donbass, a peça inacabada. Kiev, o coração mitológico ainda por conquistar. No imaginário putiniano, a Ucrânia não é um Estado soberano, mas um território extraviado da alma russa. A invasão, a agressão militar e os crimes não foram um erro tático — foi a consequência lógica de um projeto ideológico. Quem lê a guerra com os olhos do presente perde o enredo. É preciso recuar dois séculos para perceber que Putin é Potemkin, mas com mísseis e muito mais perigoso e lunático.

E como Potemkin, também Putin ergue fachadas. O cessar-fogo pascal de 30 horas, anunciado com solenidade, é exemplo perfeito da encenação estratégica a que o Kremlin se entregou com maestria. Não foi um gesto de boa vontade, mas um movimento de xadrez. A trégua serviu para transmitir, ao Ocidente — sobretudo a Donald Trump e aos seus emissários oficiosos — a imagem de uma Rússia razoável, aberta à paz, magnânima no meio da guerra. E, ao mesmo tempo, para provocar Zelensky, desafiando-o a recusar o gesto, encurralando-o na narrativa de intransigência. E poderá ter corrido mal.

A manobra é cínica, mas eficaz até ver. Ao propor um cessar-fogo durante a Páscoa ortodoxa — precisamente no momento em que Washington pressiona Kiev e Moscovo a encontrar soluções políticas — Putin transforma a fé num instrumento de propaganda. Os Romanov faziam igual. A Rússia, que bombardeia hospitais e deporta crianças, apresenta-se como defensora da paz e da espiritualidade. A Ucrânia, que resiste à ocupação, é acusada de inflexibilidade, de rejeitar a trégua, de prolongar o sofrimento. A inversão é tão grotesca quanto familiar: é o velho truque imperial de transformar o agressor em vítima e o oprimido em obstáculo.

Mas a Rússia não quer a paz. Não agora, não nestes termos. O que Moscovo exige é claro, ainda que raramente seja dito de forma explícita. Pretende, antes de tudo, a saída de cena de Volodymyr Zelensky — figura que simboliza não apenas a resistência ucraniana, mas a sua aproximação política e moral ao Ocidente. A seguir, deseja a instalação de um governo em Kiev dócil ou, no mínimo, neutral, que aceite uma Ucrânia desmilitarizada, fora da NATO, e dependente do eixo Moscovo-Pequim. A anexação formal da Crimeia deve ser reconhecida pela comunidade internacional como facto consumado, e o controlo definitivo sobre Donetsk e Luhansk, sob pretexto de “proteção das populações russófonas”, deverá ser aceite como nova realidade. A ambição última é moldar uma Ucrânia submissa, amputada, silenciosa — uma Finlândia forçada do século XXI, neutralizada e resignada à esfera de influência russa.

Este objetivo final é mais do que militar. É político, simbólico, quase metafísico: restaurar uma ordem em que a Rússia seja temida, respeitada e tida como centro inevitável de decisão. É Catarina, a Grande, reencarnada em Vladimir.

A comparação com Potemkin não é um capricho literário. É uma chave de leitura. O regime de Putin vive da encenação: eleições falseadas, patriotismo de propaganda, inimigos internos inventados, vitórias militares proclamadas sem correspondência no terreno. A realidade não é ocultada — é substituída. Como nas aldeias de Potemkin, o que interessa não é a verdade, mas a impressão. O poder mede-se pela capacidade de dominar a narrativa.

E é essa narrativa que Putin procura manipular com astúcia imperial. Ao encenar tréguas, simular magnanimidade e inverter os papéis entre agressor e agredido, Moscovo tenta adormecer a vigilância ocidental, sem nunca abdicar dos seus objetivos estratégicos. O seu realismo é cruel, mas coerente: a guerra continuará até que os despojos da Ucrânia sirvam para reconstruir o espelho partido do orgulho russo.

A ilusão serve para distrair. O império, para dominar. E nós, se quisermos ver para além das fachadas, teremos de recusar o conforto da encenação — e enfrentar, com lucidez, a verdade que Potemkin nos ensinou e Putin nos repete: o poder não precisa de ser verdadeiro — basta que pareça inevitável.