O PS é o partido mais português de Portugal. Mário Soares não o fez igual ao francês ou espanhol, muito agarrado a uma leitura de luta de classes, nem o organizou como os sociais democratas, assentando a sua ação a partir dos sindicatos.

O PS foi sendo a soma dos que queriam sair da pobreza, que queriam ir mais além. Não era só um caminho individual, era, também, uma rota partilhada pela comunidade.

As três marcas que serviram sempre como baias, são - a escola universal, a saúde pública e a segurança social para todos. Ainda hoje são a nossa trilogia.

O PS tinha operários, pequenos comerciantes, funcionários públicos e dos serviços e muitos professores. Tinha algumas elites, uns que vinham das lutas contra o salazarismo e dos movimentos republicanos e outros que se realizavam na medicina, na justiça e nas universidades, poucas, que na altura existiam.

Mas o que mais fez pelo PS foi a esperança de cada um ser mais hoje do que ontem.

Três quartos dos portugueses tiveram avós que passaram privações e que tinham pouquíssima escolaridade, que viveram o mundo a preto e branco marcados pela pequenez do país, pela guerra colonial e pela fome. Esta geração tem hoje, como elemento matriz, o medo de quase tudo. A grande preocupação deste universo é, por estes dias, a ordem.

Os filhos destes começaram a ter uma vida melhor, foram até ao quinto ano, depois até ao sétimo e, uns poucos, até às universidades. Construíram famílias de quatro pessoas, deslumbraram-se com um Toyota ou um Datsun, passaram a fazer uns dias de férias, a realizar picnics ao domingo, porque ao sábado ainda trabalhavam. Compraram a sua casa de família a partir da década de 1980, quando os juros deixaram de estar acima dos dois dígitos.

Viram chegar a União Europeia, os investimentos que saltavam num abrir e fechar de olhos. A diferença entre os socialistas e os do poder cavaquista é que os nossos não se fizeram patos-bravos, seguiram pelo trabalho e pela criatividade. Muitos foram longe, mas não deixaram de ter uma visão do coletivo, da solidariedade que se impõe na sociedade. A grande preocupação desta geração era, e é, a segurança.

Estes, os da geração que atravessou Abril, criaram filhos e já netos que mandaram para as universidades a caminho da massificação. Fazem Erasmus, não querem ter uma “família convencional” nem um emprego para toda a vida, não sabem o que é isso de “trabalhadores” e “patrões” na velha ideia da luta de classes, tanto vendem o seu trabalho a outrem como o usam para contratarem outros. Circulam pelo mundo e têm amigos nos quatro cantos do globo. São os jovens querem ter um futuro em que o Estado seja a cola da sociedade, mas não se lhes imponha, avassaladoramente, nas opções que querem tomar. A matriz desta geração é a liberdade.

Quem vê as missas de queima das fitas, vê o país das três gerações, avós e pais, famílias, que chegam finalmente à universidade através dos filhos e netos. Mas também vê a falta de esperança que vai nos olhos dos finalistas perante o futuro. E é sobre esse futuro que temos de assumir as nossas obrigações. Temos, assim, as três marcas das três gerações – ordem, segurança, liberdade.

Desenvolvi uma representação da maioria das famílias que sempre votaram PS, mas também das famílias que deram as vitórias, a cada tempo, aos socialistas.

Vivemos, porém, uma sensação de desconforto. Será que o PS ainda estará à altura de ser um grande partido que represente transversalmente a sociedade?

O que aconteceu na última década e meia foi uma profunda separação de parte das elites políticas, que passaram a dirigir o PS, desta realidade sociológica que fez o PS. Muitos dirigentes tiveram uma vida feita na classe média-alta, não conhecem a mão calejada, não tiveram de ajudar a família nas férias, nunca somaram o tempo do estudo ao tempo do transporte escolar. Não sabem como é a vida num bairro pobre, nunca assistiram ao facto de uma pessoa não conseguir um emprego só porque vive num determinado sitio problemático. Tudo o que sabem é das reportagens, das estatísticas.

Muito do PS inserto na estrutura política nacional da última década, deixou de falar com a gente comum, foi impingindo ideias, por vezes só slogans, sobre o que é ser socialista.

Porém, sempre houve outro PS e esse é o do território e dos autarcas que são hoje considerados como gente menor. Guterres e Sócrates entendiam o território; Costa, enquanto ministro, também entendia. Mas, depois de ter sido alcaide em Lisboa, passou a achar que os 307 concelhos restantes eram província. Incluindo o Porto, escarnecido no processo INFARMED.

A nossa última experiência governativa teve três fases: a primeira, a do corte com a Troika; a segunda, a do tacticismo humilhante para os partidos que tinham permitido a “geringonça”; a terceira, a da insuficiente governação, cheia de casos, que acabou de forma dolorosa.

Neste período, passou a existir no PS uma franja considerável de dirigentes que tiveram tudo na sua vida e que acham que o Estado, esse ente terrível, deve invadir a vida dos cidadãos. Sim, o Estado tem um papel determinante, mas as pessoas cansam-se dele quando não responde como deve.

E o mais impressionante deste novo mantra, é a nova caridade pública. No passado, senhoras saíam da missa e davam esmola fazendo uma festa nos cabelos oleosos das crianças descalças; hoje, o Estado substitui as senhoras, mas nem uma festa faz nos cabelos das crianças porque inventou uns telefones que dizem - prima um, prima dois, prima três...

As pessoas querem ajudas quando precisam. Mas não querem ser eternamente pobres, miseráveis. Querem ser gente!*

Nos últimos anos, fizeram-se experiências para encher o olho, mas, resolver os problemas profundos e centrais, isso foi esquecido. O que era estrutural ficou pendente, pouco se avançou. Razão tinha Pedro Nuno Santos quanto aos atrasos sobre o aeroporto. Que grande lamento o meu que tanta esperança tinha em Costa!

Fomos cavalgando a onda dos neossalazaristas que estavam a regressar não cuidando de atacar os problemas que os fazem crescer. Elegemos o Chega como “amigo” na retórica para anular a direita tradicional, mesmo que isso fosse só conversa interna.

Fizemos tudo mal? Claro que não! Estivemos bem nas contas públicas, no investimento estrangeiro, nos transportes e na mobilidade, no ambiente e na energia. Mas o muito que não fizemos deixou raízes profundas que exigem tempo, paciência e moderação. E exigem a escolha de novos protagonistas que conheçam o país e tenham uma vida na gestão da coisa pública.

Estamos num tempo de grandes decisões. Ou olhamos para as três gerações que atrás identifiquei e voltamos a falar a linguagem de cada uma, a responder aos anseios de cada uma, a mostrar futuro a cada uma, ou então vamos passar um largo período na oposição. Comeremos líderes atrás de líderes, andaremos a perder implantação a cada dia, envolver-nos-emos em conversas estéreis que não interessam a ninguém. E perderemos os autarcas que um dia começam a fazer listas de independentes e não querem saber mais dos tipos de Lisboa.

As grandes questões que preocupam a primeira geração indicada, são a guerra, a saúde, as pensões, o preço da eletricidade, a solidão e o isolamento e, por incrível que parece, que as televisões continuem a passar todos os Tony Carreira possíveis e não lhes tirem o Preço Certo. Não vale rir, é mesmo isto!

As preocupações da segunda geração são o policiamento, os impostos, os salários, a poupança, a saúde, a recreação. E a terceira geração olha para o país pedindo mais e melhor habitação, mais mobilidade pessoal e territorial, melhor gestão nas empresas e no Estado com melhores salários, flexibilidade nos horários, melhor educação/formação, melhor ambiente e mais acesso à cultura, tudo sem deixarem de se preocupar com os direitos humanos.

O PS nunca foi um partido de protesto, sempre se revelou contra agendas de nicho, nunca abandonou a temperança. O PS é a força do comum, o abraço ao simples, o cumprimento ao outro igual. O PS é o partido que não atira a matar, que sabe o que é compaixão. Quem caminha sozinho e fala para o ar, sem olhar nos olhos do que sofre, é míldio na videira saudável que sempre foi o partido dos socialistas portugueses.

As agendas do PS não são as agendas do nosso grupo de fim de semana, são as agendas transversais, é a linguagem simples. As agendas dos socialistas portugueses são as respostas a vastos setores sociais sem paternalismo, sem o elitismo típico de académicos associais.

Para se mudar o mundo há uma regra assente em base três: um programa que sirva o interesse geral; a proposição de uma boa governação com um sério combate às corrupções; o contar “cruzes” e ganhar as eleições.

Se há socialistas que se estão marimbando para este trilátero, então o melhor é abandonarem a loja. Há sempre gente com vida, e com calos nas mãos, disponível para agarrar o arado.


* aconselho vivamente a leitura do romance autobiográfico de Édouard Louis de Para acabar de vez com Eddy Bellegueule, 2014.