
“Há décadas em que nada acontece, e semanas onde acontecem décadas.” A frase é de Vladimir Ilyich Lenin, um homem que sabia uma coisa ou outra sobre impor a sua vontade à força. Cem anos após a sua morte, o Ocidente, onde ele viveu resguardado dos extremismos czaristas enquanto apurava a sua própria receita de radicalismo, está de novo à procura de si mesmo. E tudo por causa de um outro russo que, com a invasão de um país soberano, primeiro em 2014 e de novo em 2022, veio testar as relações transatlânticas como ninguém desde Hitler. Putin é o russo, a Ucrânia o país-cobaia para o seu imperialismo e a Europa está logo ali ao lado.
A nova Administração Trump é um teste de stress a todo um sistema político assente em regras gizadas no pós 2ª Guerra Mundial e que, até recentemente, Estados Unidos e aliados na UE tinham conseguido manter. Mas em poucas semanas, e isso tem sido mais notório desde a chegada de Trump à Casa Branca, desceu sobre a Europa uma suspeita desconfortável sobre o seu maior aliado. Estará Washington em prontidão para responder a um ataque russo sobre um membro da NATO?
É “fundamental” não fazer grandes concessões
Talvez sim, talvez não. Depois de declarações do seu vice-Presidente, J.D. Vance, e do seu enviado para a Ucrânia, Keith Kellogg, que fizeram tremer os líderes europeus, o Presidente de França, Emmanuel Macron, decidiu que era melhor não confiar nos humores de Trump, ainda que a volatilidade dos mesmos possa resultar em futuros momentos de menor animosidade com os aliados, e marcar uma mini-conferência no Eliseu onde estarão presentes Alemanha, Reino Unido, Itália, Polónia, Espanha, Países Baixos e Dinamarca, além dos Presidentes do Conselho e da Comissão Europeia e o Secretário-Geral da NATO.
A agenda é, no mínimo ambiciosa. Decide-se não só o apoio à Ucrânia e as negociações de paz, mas possivelmente um novo cenário de maior autonomia europeia em relação a Washington. “Acho que é muito importante esta reunião, é muito importante que ainda haja alguém que tenha aqui alguma iniciativa”, começa por dizer ao Expresso o professor, historiador e especialista em assuntos internacionais Bruno Cardoso Reis, que neste momento está a conduzir a sua investigação precisamente a partir dos Estados Unidos.
Os países europeus têm de ter algum amor próprio, não vão responder como se fossem alunos da escola e Trump o professor”, diz Bruno Cardoso Reis
“O fundamental, do meu ponto de vista, é, em primeiro lugar, recusar fazer qualquer tipo de concessão ou resposta pública a Trump, por exemplo, responder aos questionários que os americanos mandaram. Acho que é evidente que os países europeus têm de ter algum amor próprio, não vão responder como se fossem alunos da escola e Trump o professor”, diz o académico, numa referência à notícia do “Financial Times”, na qual se lê que o Departamento de Estado dos EUA pediu pormenores sobre o equipamento militar que os países europeus poderiam fornecer à Ucrânia, bem como sobre o número de brigadas de tropas que estariam dispostos a enviar para um futuro acordo de preservação da paz.
“Não prevejo, pelo menos por enquanto, nada de particularmente inovador, mas posso estar enganada porque acho que também a Europa nunca teve um momento assim”, diz a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa Diana Soller, que, no entanto, não se revela muito otimista. Adverte que “a Europa reúne mais do que decide” e sem esperar uma grande reviravolta já nesta conferência, elenca o que seria “desejável”. “O ideal seria que a Europa tomasse verdadeiramente uma decisão que não englobasse apenas um dos desafios, e que pensasse bem o que quer ser no mundo. Porque, apesar de tudo, os Estados Unidos não fecharam a porta à Europa, certo? No fundo o que os Estados Unidos têm dado a entender é que não vão abandonar a NATO, só que é preciso mais investimento”.
“O ideal seria que a Europa tomasse verdadeiramente uma decisão que não englobasse apenas um dos desafios, e que pensasse bem o que quer ser no mundo", considera Diana Soller
Quando ao questionário, a professora parece vê-lo como uma oportunidade, e não tanto como uma imposição. “Gostava que a Europa pensasse se quer realmente dar um contributo, que contributo é esse, e procede a uma análise sobre que mentalidade quer ter em relação à guerra, em relação à Defesa, em relação ao mundo, em relação ao papel que quer ter no mundo”.
Emissão de dívida conjunta para a Defesa?
“Em segundo lugar, é preciso exigir um lugar na mesa de negociações de paz, e em terceiro lugar, na minha opinião, seria importante deixar já bem claras algumas condições indispensáveis para um acordo”. Um exemplo: “É importante haver garantias de segurança, e uma ideia que já está a ser avançada é a de que, havendo uma violação do cessar-fogo por parte da Rússia, portanto, uma nova agressão contra a Ucrânia, que isso leve automaticamente a Ucrânia a acelerar a entrada na NATO. Obviamente é extremamente complicado de se conseguir, mas é uma forma de ir alimentando a discussão”, adianta o professor. “Acho que é importante que os europeus não deixem que as propostas que surjam sejam apenas de americanos e russos”.
Outro ponto consensual, diz Cardoso Reis, devia ser "haver já algum anúncio sério em relação à questão de investimento em segurança e defesa na Europa. Aí, a Presidente da Comissão já adiantou uma questão importante. Finalmente, depois de os países do Sul da Europa insistirem nisso, a flexibilização das regras orçamentais, e a emissão de dívida comum por parte dos países europeus para financiar um aumento substancial do investimento em defesa. Historicamente, isto é a única forma de se avançar rapidamente”.
Zelensky tinha pedido o mesmo em Munique. “Os velhos tempos acabaram. Temos de construir as forças armadas da Europa para que o futuro da Europa dependa apenas dos europeus e para que as decisões da Europa sejam tomadas na Europa”, disse Zelensky. Também o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, reiterou as palavras de Zelensky, num post na rede social X. “A Europa precisa urgentemente do seu próprio plano de ação relativamente à Ucrânia e à nossa segurança, ou então outros atores globais decidirão sobre o nosso futuro. Não necessariamente de acordo com os nossos próprios interesses. Esse plano deve ser preparado agora. Não há tempo a perder”, escreveu.
“Trump só respeita a força”
Donald Trump nunca escondeu que a sua prioridade não seria a segurança da Europa e chegou a encorajar Putin a invadir os países que não dedicam uma parte significativa dos seus orçamentos à Defesa. Mas foi nos últimos sete dias que o nível de desalinhamento se tornou claro.
O telefonema de 90 minutos entre Trump e Putin, e só depois com Volodymyr Zelensky foi o primeiro sinal. Pouco depois, Trump, que por estes dias passa o dia sentado a assinar decretos e a falar aos jornalistas sobre tudo o que lhe seja perguntado, disse que a adesão da Ucrânia à NATO “não é prática” e afastou o cenário de que os territórios perdidos na guerra pudessem ser devolvidos a Kiev. Uma hora e meia foi o suficiente para que o Presidente do país com a maior força militar do mundo admitisse publicamente as mesmas opiniões do próprio Putin: os territórios serão russos e a Ucrânia na NATO é uma realidade que nem sequer está a ser ponderada.
O discurso mais controverso ainda não tinha acontecido. A honra viria a ser de J.D. Vance. Numa intervenção que não lhe resgatou mais do um tímido aplauso aqui e ali, Vance elencou uma série de pecados europeus: do globalismo à alegada falta de liberdade de expressão nos meios de comunicação social e redes sociais, as elites políticas que instrumentalizam a justiça, esquecendo de certo que o seu próprio Presidente prometeu ir atrás dos seus inimigos políticos assim que fosse eleito, e mostrou-se ignorante relação ao trauma europeu com o fascismo ao convidar os líderes partidários a acabar com os cordões sanitários à extrema-direita, dizendo que as democracias não sobreviveram “tentando convencer a milhões de eleitores que os seus pensamentos e preocupações, as suas esperanças, os seus pedidos de ajuda são inválidos”.
Para piorar o ambiente em Munique Keith Kellogg, questionado sobre se a Europa estaria presente nas conversações de paz na Ucrânia, disse “isso não vai acontecer”. Já no domingo, a BBC noticiou que representantes da Rússia e dos Estados Unidos vão reunir-se na Arábia Saudita mas a Ucrânia não foi convidada. Para Bruno Cardoso Reis este é um momento significativo, que deve levar a Europa a adotar uma atitude temerária. “Para os europeus, esta mudança de discurso significa uma quebra, significa que deixam de poder contar com os Estados Unidos”, diz ao telefone, lembrando que, apesar de Trump “dizer e desdizer com grande facilidade”, os europeus não devem ficar à espera de uma mudança de humor que o volte a colocar do lado dos aliados. “Trump só respeita a força e portanto os líderes europeus devem assumir posições de força sempre que possível, sempre que haja coesão suficiente para isso”. Por isso mesmo elogia a intervenção do chanceler alemão, Olaf Scholz, que respondeu a Vance dizendo que, até ver, ninguém tinha impedido uma maioria de alemães de se expressar, uma vez que a Alternativa para a Alemanha (AfD, extrema-direita) nunca teve o voto da maioria dos alemães.
Scholz, de resto, foi o mais duro na resposta a Vance, ao frisar que os europeus não vão aceitar “interferências estrangeiras nas suas democracias”, uma frase tantas vezes brandida contra… a Rússia. “Também não é garantido que resulte, mas pode ser uma forma de conseguir que o Donald Trump recue, faça cedências, declarando vitória, claro, para sair sempre como vencedor, mas em termos substanciais muitas vezes recua”, defende Bruno Cardoso Reis.
“Trump rege-se por economia e ego: se ele perceber que tensões com a Europa, problemas na Ucrânia, são impopulares nos Estados Unidos e que, portanto, passa uma imagem de fragilidade, pode ser que repense. Esse é um dos pontos que os europeus deviam reforçar: que isto pode ser pior do que o Afeganistão para Biden e que o Presidente que deixar isso acontecer na Ucrânia está a passar uma imagem de fraqueza em relação à Rússia”, diz o investigador. A questão economia pode dar um empurrão. Cardoso Reis lembra que “48 Estados americanos exportam mais para a Europa do que para a China, inclusive a Califórnia. Se houver muitos problemas, isso também será mau para a economia americana, pode desencadear uma guerra comercial”.