
Kashgar, cidade em fervilhante atividade há mais de dois mil anos, voltara a abrir as portas para o mundo há menos de uma década. À semelhança das congéneres Samarcanda e Bucara, imortalizou o seu nome forjando-o à Rota da Seda que durante séculos ligou comercialmente a China, a Índia e o Mediterrâneo.
Toda a Kashgaria – o nome histórico da região situada a oeste da bacia de Tarim – fora também um importante ponto de passagem para sucessivos exércitos invasores.
Depressão com a impressionante extensão de 1500 quilómetros, a bacia do Tarim abrange a maior parte do extremo oeste da China, e consiste quase inteiramente num deserto hostil, pontilhado com oásis, conhecido como Taklamakan, “o deserto do não retorno”.
Um oásis habitado por uigures
Kashgar situa-se a 1300 metros acima do nível do mar, precisamente num desses oásis habitado por uigures, a etnia predominante e a mais numerosa das doze minorias que povoam o Xinjiang (recorde-se que na China existem 55 minorias), e que descende das tribos turcas que vivem nestas paragens desde o século XI.
Ultrapassada a sua fase guerreira, transformaram-se, na sua maior parte, em agricultores e comerciantes, coabitando pacificamente com os uzebeques, seus primos diretos, e com os cazaques, nómadas de origem mongol conhecidos como cavaleiros de grande craveira. Vivem aí outras minorias, como os tártaros, os daurs, os mongóis e o que resta da tropa de Russos Brancos fugidos à revolução bolchevique de 1917.
Entrei em Kashgar ao anoitecer e desde logo senti que iria ficar por ali algum tempo. De facto, não só aí permaneci todo esse seco e frio Inverno, como voltaria a visitar de novo a cidade e a região em diversas ocasiões.
No decorrer de uma década e meia testemunhei as imensas transformações entretanto acontecidas.
Fazia parte da última ‘carrada’ de visitantes daquela temporada. Comigo tinham viajado alguns negociantes paquistaneses que, após breve estadia em Kashgar, seguiriam para Urumqi (capital do Xinjiang), Xian, Cantão e, finalmente, Hong Kong, com o inevitável saltinho a Macau (um ou dois dias), para tentar a sorte nas mesas dos casinos locais. Essa era uma rota que se tinha vindo a popularizar ao longo dos últimos anos.
Na altura eram ainda poucos os ocidentais a aventurarem-se por estas paragens. Fiquei acomodado num dormitório do Qinibagh (outrora consulado inglês) onde já se encontravam doze viajantes japoneses.
Muitos deles visitavam o Xinjiang porque um famoso documentário televisivo ilustrado por uma banda sonora composta por Kitaro, músico nipónico New Age, tinha popularizado aquela remota região, mas também haveria, porventura, quem o fizesse em busca do seu passado budista.
Um passado inscrito nas ruínas das outrora prósperas cidades perdidas no deserto, nas caves budistas de Donhuang e nalguns hábitos bastante arreigados no povo uigur, como, por exemplo, rapar o cabelo como fazem os monges.
A imagem dos barbeiros na berma da rua ou nos mercados, de navalha em riste e bacia de alumínio com água quente ao alcance da mão, debruçados sobre as cabeças de velhos e crianças era comum no dia-a-dia da cidade. Um outro hábito budista preservado até hoje é o modo como os velhos uigures se sentam nas carpetes das casas de chá. É um sentar ajoelhado, tal como os japoneses o fazem sobre o tatami.
Com esse interessante e excêntrico grupo (alguns deles queriam atravessar parte do deserto numa carroça puxada por jumentos!) depressa criei laços de amizade, e por ali fiquei, em família, celebrando uma reedição da centenária amizade luso nipónica numa terra com um nome sugestivo.
Kashgar pressupõe imobilidade, final de jornada. No caso, um longo interregno.
O Natal desse ano teve ceia japonesa seguida de uns biscoitos de fabrico local e um muito adocicado Turfan Port Wine (versão local do nosso vinho do Porto), que serviu na perfeição de sobremesa.
A cidade que nos tinha enfeitiçado
Qinibagh era o nosso lar; Kashgar a labiríntica cidade que nos tinha enfeitiçado. Sentia-me num vácuo, no interior de uma bola de cristal de um mago que teimosamente se recusava a quebrar o feitiço. Era como se o tempo deixasse de ter sentido, simplesmente não existisse. E, na realidade, em muitos aspetos, Kashgar nada tinha mudado desde a época medieval.
O transporte citadino baseava-se essencialmente em carroças puxadas por cavalos – os táxis locais – devidamente numeradas. A cobri-las, um toldo multicolorido sob o qual os passageiros se sentavam numa bonita carpete estendida nas suas pranchas de madeira.
A parte mais vistosa da geringonça era o seu ‘motor’, ou seja, cavalos enfeitados com bandeirolas e com uma tal profusão de sinetas que, ao trotarem pelas ruas, faziam-nas soar dando um ar de permanente festividade natalícia. Era como se o Pai Natal fosse aparecer ao dobrar da esquina a qualquer momento.
O tráfego motorizado limitava-se a uns quantos camiões de carga, camiões atafulhados de couves (com destino ao mercado ou aos aquartelamentos das tropas estacionadas nas imediações da cidade), tuk-tuks – pequenos tratores muito característicos na China – ou camionetas sem vidros e em muito mau estado. Os veículos mais vistosos – carros de fabrico soviético e Pajeros japoneses – pertenciam, invariavelmente, à polícia ou ao exército.
Passados uns anos, esses românticos veículos deixariam as ruas da Kashgar, acusados de poluírem o macadame e as vielas de terra batida com os excrementos dos portentosos quadrúpedes que os puxavam. Paralelamente, o tráfego motorizado foi aumentando de ano para ano, traduzindo bem a prosperidade dos negociantes locais, resultante de um muito rendível comércio com os milhares de paquistaneses que passariam a chegar mensalmente a Kashgar.
A cidade fervilhava ainda com misteres antiquíssimos que nos transportavam de imediato para a atmosfera dos contos de Dickens e a dramatologia de Brecht.
Refiro-me aos ferreiros batendo a chapa e a alpaca que decorava os baús dourados pousados na rua junto às respetivas oficinas; aos carpinteiros transformando troncos de bétula em utensílios de cozinha, berços de bebé e demais móveis; aos barbeiros; aos sapateiros; aos construtores de instrumentos musicais incrustando na madeira pedaços de corno e osso de iaque; aos cardadores de algodão que mais pareciam tocadores de berimbau; aos tintureiros; aos ourives; aos alfaiates; aos fabricantes de bonés esguichando água por entre os dentes para cima do tecido, de forma a mantê-lo liso; aos meliantes, boina puxada para cima da testa, cigarro ao canto da boca e ares de maus da fita, esperando a oportunidade; aos vendedores de fruta, pão e ovos cozidos, aninhados nos passeios; a uns certos cozinheiros rodeados de enormes e fumegantes panelas onde fervia o pulau, a xorpa, o sorquesh e o ruiman, pratos tradicionais da culinária uigur; ao exibicionismo ilusionista de outro tipo de cozinheiros preparando langmans, lamians e demais massas de trigo duro, à entrada dos restaurantes, pois foi aqui que nasceu o esparguete que viria a conquistar o mundo; aos especialistas das espetadinhas na brasa rodando-as no assador, envolvidos no seu tentador aroma; às crianças de bochechas rosadas empurrando o arco, atirando o pião ou saltando à corda; às mulheres roliças, com o dinheiro enfiado nas meias de vidro; aos jumentos de ar submisso; aos vendedores ambulantes que numa variedade de pregões atraíam os clientes indecisos: «kasdela mehaman! kasela!» (compre aqui, ó freguês); etcetera.
O mais extraordinário e buliçoso mercado de toda a Ásia
Kashgar, passados dois milénios, continuava a ser uma cidade-mercado de vanguarda onde as trocas e o comércio se efetuavam a toda a hora e em qualquer lugar. Desde as grandes transações efetuadas nos mercados aos pequenos negócios ambulantes feitos à berma da estrada, passando por aqueles em que se chegava a acordo no pátio dos hotéis.
Uma visita a Kashgar não era visita nem era nada se não incluísse uma passagem pelo Iekshenbe Bazaar, ou seja, o mercado de domingo. Talvez o mais extraordinário e buliçoso mercado de toda a Ásia.
A ele acorria uma média de cem mil pessoas vindas do oásis vizinho. Logo de madrugada, os acessos à cidade ficavam pejados de intermináveis filas de carroças puxadas por mulas, grupos de camponeses a pé ou montados a cavalo, gente conduzindo manadas de vacas e ovelhas, em cima de bicicletas, nas traseiras de pequenos tratores.
O sinal de passagem – Posh! Posh! (Abram alas!) – exalado por centenas de pulmões, ficou-me nos ouvidos mesmo depois do arraial ter terminado. Nas horas de ponta – a meio da manhã e ao fim da tarde – a aglomeração na rua de acesso ao mercado era tanta que se geravam dramáticos engarrafamentos de animais, gente e veículos, sem que nunca o ambiente deixasse de ser festivo.
A primeira vez que me vi em tal aperto, achei divertidíssimo e ri-me como um perdido. Quem não gostou nada da história foi a amiga chinesa de Hong Kong com quem eu estava. Pasmou com a minha atitude e disse-me o seguinte: “Não te rias, porque isto de multidões é um assunto muito sério.”
Só viria a perceber o sentido das suas palavras quando, meses depois, me vi congestionado numa plataforma de estação ferroviária (já fora dos limites de Xinjiang, na China profunda), rodeado por milhares de almas com as quais não conseguia comunicar, uma palavra que fosse.
O vendedor só respeitava o cliente que soubesse regatear
O Iekshenbe Bazaar era (e julgo que continua a ser) o verdadeiro ponto de encontro das gentes de Kashgar e arredores. Dividido em diferentes seções, a imensa feira oferecia opções para a mais exigente procura. Havia o mercado da madeira e o da roupa em segunda mão; o mercado dos frutos secos e o do açúcar cristalizado; o mercado do pão e o dos legumes; e também o dos tecidos, dos curtumes, dos gorros e das carpetes. E quando julgava que tudo estava visto, eis-me perante o mercado dos melões – montanhas de melões vendidos ao desbarato!
Atados junto a uma parede, já nos limites do bazar, uma dúzia de enormes camelos bacterianos eram a atração principal do mercado dos animais, reis de todo este elenco surrealista.
Num terreno ao lado, podiam ser experimentados os cavalos que ali estavam à venda. Era vê-los, crianças e velhos, montados nesses magníficos animais, a galope por entre a multidão que se afastava sem entrar em pânico. Eram estes os últimos a abandonar a feira, já quando o sol se punha por detrás das bétulas.
Kashgar era um paraíso para fotógrafos e para quem gostava de fazer compras. Porém, por mais insignificante que fosse o negócio, havia que regatear, pois o vendedor só respeitava o cliente que soubesse regatear. Essa era a lei.
No leque dos objetos a adquirir, cinco eram ‘obrigatórios’: botas de couro, punhais, gorros de pelo de ovelha (comprar os de pelo de gato selvagem ou de leopardo das neves, também disponíveis, seria um ato de inconsciente participação indireta na aniquilação dessas espécies em vias de extinção), tapetes – de realçar os famosos tapetes de Hotan –, e, finalmente, instrumentos musicais, verdadeiras peças de arte, de braço longo e profusamente decoradas.
Uma das maiores mesquitas da China
O coração da cidade, no entanto, residia na sua mesquita principal, a Id Kha, verdadeira caixinha de surpresas, onde tudo podia acontecer.
Construído em 1442, este edifício forrado a azulejos amarelos é ainda uma das maiores mesquitas da China, com capacidade, se considerarmos o pátio e os jardins interiores, para oito mil pessoas. Esse é hoje, mais do que nunca, o ponto fulcral da vida religiosa e social dos uigures.
A chamada para a oração, a azan, era feita do alto dos minaretes através de um altifalante, cinco vezes ao dia, como é da tradição no Islão, e a esse apelo acorriam, ao longo do dia, milhares de fiéis.
Junto ao portão principal sentavam-se os patriarcas em amena cavaqueira, enfiados nos seus longos casacos e botas de couro de cano alto.
Durante o Verão, estes anciãos cobrem-se com leves vestes de algodão e seda com riscas coloridas, mas de Inverno envergam casacos forrados a algodão, e nunca tapam o peito, faça o frio que fizer. Essa é uma regra de ouro e, quiçá, o segredo da sua longevidade.
Sempre que havia um funeral, as imediações enchiam-se de homens vestidos com samarras negras de faixa branca em volta da cintura e turbante em redor do gorro, já que para os uigures tanto o preto como o branco simbolizam o luto.
As mulheres passearem-se de bicicleta com a saia bem puxada para cima
As mulheres também se deslocavam à Id Kha, todas as sextas-feiras, para abençoar o pão especialmente cozido nesse dia santificado. Algumas delas, oriundas de famílias mais conservadoras, envergavam a purdha, que, na versão local, é um longo véu de malha de cor castanha colocado na cabeça para ocultar o rosto.
O seu número, porém, para desagrado dos mais fundamentalistas, decrescia de ano para ano.
As mulheres do Xinjiang eram já emancipadas e gozavam de um estatuto privilegiado em relação às mulheres do restante mundo islâmico. Era vê-las passearem-se de bicicleta com a saia bem puxada para cima, ou então reparar no à vontade com que comunicavam com os estrangeiros.
Por outro lado, tanto os kafires (assim são apelidados os descrentes que comem carne de porco, neste caso, os restantes chineses) como os crentes de outras religiões, tinham livre acesso ao interior da mesquita. Os uigures continuam a ser os mais liberais dos muçulmanos. Vantagens, sem dúvida, do sistema político chinês.
Nas pequenas barracas de metal coladas aos muros laterais da mesquita vendia-se de tudo um pouco. Do lado direito, expunham-se bonés, boinas, ferragens, calçado e sacos de viagem. No lado oposto, as barraquinhas azuis ocultavam um conteúdo de respeito apenas conhecido dos velhinhos que as geriam, tentando vender à socapa (ou impingir) exemplares do Corão de todos os tamanhos e feitios, antiguidades, pergaminhos, livros raros e todo o tipo de bricabraque. Esta região era bem conhecida pelos seus falsários que se esmeravam nas cópias que produziam, e cujo rigor era internacionalmente reconhecido.
Durante o Ramadão – período do ano em que os muçulmanos jejuam desde o sol nascente ao sol poente, geralmente entre Abril e Maio –, a praça servia de pista para uma dança ritual que os homens executavam de madrugada, durante horas a fio, até atingirem um estado de transe.
O som estridente da suona e o ritmo endiabrado dos tambores marcavam o compasso, propagando-se por toda a cidade, mantendo-a desperta. Os instrumentos eram tocados por músicos sentados no alto do minarete, cujas silhuetas se recortavam contra um céu de lua crescente.
Façamos aqui um parênteses para evocarmos o jesuíta Bento de Góis – o primeiro grande explorador da Ásia Central – que passou por Kashgar, em 1604, a caminho de Iarcanda, outra importante cidade na Rota da Seda.
Escreve o padre Fernão Guerreiro (que coligiu alguns apontamentos deixados por esse açoriano) que os habitantes locais ficaram surpreendidos por “um homem de tanta inteligência” não partilhar da sua fé.
Por seu lado, Góis manifestou espanto pela quantidade de mesquitas e não se esqueceu de salientar, precisamente, a santidade das sextas-feiras e o apelo à oração feito do alto dos minaretes, que ainda hoje se faz sem microfones, e, em certas ocasiões festivas, ao som de cornetas e tambores, como atrás ficou dito.
Quanto mais barulhenta e estridente, melhor é a festa
De modo similar são celebrados os casamentos, que acontecem sempre no final do Outono. De madrugada ainda, uma pequena orquestra dirige-se à casa da noiva para animar os convivas que, ao longo de toda a manhã, aí se juntam para bebericar chá e saborear o pulau – arroz de cenoura comida à mão –, o pão com cebola e o delicioso melão.
A refeição é breve e todos estão convidados. Conhecidos e desconhecidos, amigos e inimigos, muçulmanos ou não. Da parte de tarde visita-se a casa do noivo, onde igual confraternização tem lugar, com a devida música, comida e bebida. Muito discretamente, num dos recônditos da casa, e só para a rapaziada mais chegada, é servido o tão cantado e semiproibido ak arak, a potente aguardente local.
Chegado o crepúsculo, os amigos do noivo partem com ele nas traseiras de um camião, fazendo soar cornetas e tambores pelas ruas da cidade, ao mesmo tempo que lhe gritam aos ouvidos insultos amigáveis. É a despedida de solteiro. Os restantes convidados seguem em jipes e numa camioneta alugada para o efeito. Quanto mais barulhenta e estridente, melhor é a festa.
Como é da tradição, a noiva deve chorar
A noiva aguarda em casa, acompanhada da sua família e do padre islâmico, o muhla, que efetua uma breve cerimónia assim que o noivo chega para levá-la consigo. Como é da tradição, a noiva deve chorar porque deixa a casa materna. Ou, pelo menos, deve simular que chora.
Logo depois, o cortejo volta a palmilhar os cantos da cidade, de novo rumo à casa do noivo. No ar fica, por algum tempo ainda, o som estridente das suonas e o matraquear dos tambores.
A respeito da tradicional hospitalidade dos uigures, escreve Matteo Ricci (superior jesuíta em Pequim) que, durante a estada do açoriano em terras da Kashgaria, fora nomeado chefe da caravana dos mercadores, um nativo da terra chamado Haji Asiz, o qual “ao saber que o nosso irmão era homem prudente e bastante rico, convidou-o para um solene banquete em sua casa, onde, além dos serviços, não faltou música daquela gente”.
A faceta leiga da praça de Id Kha era ainda mais colorida que a sua faceta religiosa. Junto à entrada principal da mesquita aglomeravam-se constantes magotes, num verdadeiro fluxo de vida que descia ao terreiro, tudo dependendo das horas e do dia.
Feira da ladra em miniatura
Aos fins-de-semana, a presença dos habitantes vindos das aldeias oásis em redor dominava a cena, quebrando o habitual cenário dos vagabundos que permanentemente aí viviam, repartindo entre si a comida e as esmolas que recebiam dos viandantes.
Todos os dias, a partir das cinco da tarde, o local servia de feira da ladra em miniatura. Ao dispor do comprador havia objetos tão díspares como bicicletas, armários ou fornos de ferro. Com alguma frequência também por lá apareciam saltimbancos, ilusionistas ou músicos de rua. Fosse o que fizessem, tinham público garantido, curioso e sedento de novidade.
A leste de Id Kha, por detrás de alguns armazéns do Estado, situava-se o mercado central da cidade: um labirinto poeirento de ferreiros, retalhistas, boticários, ourives, vendedores de peles, de facas (as facas de Yengensar, uma povoação situada a meia centena de quilómetros a sul de Kashgar, eram as mais reputadas); casas de chá (em Xinjiang, o ato de beber chá resume-se a uma simples tigela de chá barato acompanhado por pão; quando muito, acrescenta-se um torrão de açúcar cristalizado para adocicar, ou então umas nozes para acompanhar o pão), padarias sem conta, apresentando ao transeunte uma apetitosa variedade de pão, pequenos restaurantes onde os velhos se sentavam a beber chá e a fumar cigarros enrolados em papel de jornal ou pequenos cachimbos de pólen de marijuana, enquanto as mãos dedilhavam as cordas de aço de um rebab de pele curtida.
Destaco ainda as inúmeras vendas com uma variedade indescritível de chapéus, bonés e gorros: os atributos mais característicos de Kashgar.
Esta praça era um excelente posto de observação. Num dos lados havia um espaço aberto que, durante o dia, servia de parque de estacionamento aos jipes da polícia e a milhares de bicicletas, e, no extremo oposto, a um canto, sentados preguiçosamente ao sol, construtores de instrumentos expunham a sua obra ao olhar do possível comprador: rebabs, temburs, dabs e dotars, todos eles diferentes cordiformes de manufatura local.
Um pequeno jardim com uma torre de cimento com quatro relógios virados para os respetivos pontos cardeais, mas sempre fora de horas, dominava o centro da praça.
Kashgar, onde se confecionaram os primeiros gelados de que há memória
Posicionados em seu redor, vários fotógrafos apelavam a quem quisesse imortalizar a sua imagem, tendo como pano de fundo a velhinha Id Kha, o ex-líbris da cidade; enquanto vendedores de frutos secos e doce de gula (preparado de pétalas de rosa utilizado com fins medicinais), aninhados ao lado da mercadoria, apregoavam sem cessar, como quem canta ao desafio.
Neste meu exercício de memória, seria um grave erro esquecer o bonacheirão Osman, o melhor fabricante de gelados de toda a Ásia.
Para quem não saiba, foi em Kashgar que se confecionaram os primeiros gelados de que há memória. Já se lambia a doçaria quando Marco Polo por aqui passou, levando com ele o segredo (e a patente). Pelo menos é o que contam as lendas. O mesmo se pode dizer do esparguete, da lasanha, do ravióli e de muita outra comida italiana, que de original nada tem.
O gelado, ou sorvete, como lhe queiram chamar, era manualmente confecionado em Kashgar desde há séculos, da seguinte maneira: vertia-se o leite e o açúcar num pequeno barril rodeado de gelo, imediatamente misturados por uma batedeira acionada à manivela.
O segredo do negócio estava nos enormes blocos de gelo trazidos das montanhas e guardados debaixo da terra, para assim ficarem protegidos do calor intenso do Verão.
Embora nos possa parecer estranho, o mercado negro fazia parte integrante da economia local e a sua ilegalidade era um facto aceite. Ou seja, as autoridades limitavam-se a fazer vista grossa.
Por todo o lado avistavam-se os marney changer, como eles próprios se apelidavam, munidos de calculadoras, fazendo o negócio às claras. Quando o pretendiam fazer às escondidas, é porque a coisa não era de confiar. E truques, conheciam-nos eles de sobra. Alguns eram mesmo verdadeiros ilusionistas de cartilha. Sem cartola, mas com boné, pois uigur que se preza não dispensa tão importante acessório.
Ao cair da tarde chegavam cozinheiros com as respetivas cozinhas ambulantes e, num instante, a praça transformava-se num ruidoso mercado noturno alumiado com candeeiros petromax ou simples velas alimentadas a gordura de carneiro.
Guerreavam-se os pregoeiros num imenso zunido e chamariz constante, nada faltando: arroz pulau, peixe do rio frito, frango e ovos cozidos, pastéis de carne e os sempre solicitados shish kebab, aquilo a que chamamos espetadinhas.
Apetitosas talhadas de melão ao preço da chuva
Junto a um amontoado de melões, hirtos como estacas, homens e adolescentes disponibilizavam, ao preço da chuva, apetitosas talhadas de melão, cortadas a olho e com o sumo ainda a escorrer pelo fio da faca afiada. “Ishke mao chen, adam!” (dois mao cada, ó pessoal), gritavam eles, e logo dentes apressados e bocas sôfregas, sem se fazerem rogadas, aceitavam a ‘oferta’.
Nos férteis e reputados oásis do Xinjiang cresce em abundância trigo, milho, algodão, leguminosas e frutas, entre as quais aquele que é talvez o melhor melão do mundo, o famoso hamigua, embora não lhe fiquem atrás, em doçura e qualidade, as uvas, os pêssegos, os alperces, as maçãs, as romãs, as melancias e os figos.
Os uigures têm imenso orgulho na fruta que cultivam. Aliás, têm orgulho em tudo o que lhes pertence.
As vendedoras de ovos (a coloração a vermelho ou amarelo diferencia os cozidos dos crus) e das duas variedades de pão de trigo (nan e bolka) alumiavam bancas com velas e candeeiros. E, ocasionalmente, disponibilizavam cestos cheios de deliciosas pequenas broas de milho branco, as konak nan. Eram essas mesmas mulheres que todas as manhãs traziam para a praça o iogurte fresco em malgas de cerâmica, chegando algumas delas a ir vendê-las à entrada dos hotéis onde se alojavam os estrangeiros.
Os mais sofisticados vendedores de frutos secos possuíam carroças adaptadas em cima das quais expunham, em compartimentos estanques, pevides de girassol (esta semente era consumida em grande quantidade por toda a China), pevides de abóbora, amendoins, favas fritas, passas de uva branca, nougado de nozes e sésamo; e posicionavam-se sobretudo em frente dos cinemas e teatros, sendo os primeiros a montar a banca e os últimos a desmontá-la.
Numa das minhas últimas deslocações ao Xinjiang, reparei que a difusão de vídeos indianos (introduzidos pelos comerciantes paquistaneses, tornaram-se rapidamente muito populares) tinha alterado o ambiente do mercado noturno, pelo menos no que se refere à quantidade de decibéis.
A partir da praça de Id Kha, a cidade velha espalhava-se em todas as direções, assemelhando-se a uma gigantesca teia de aranha num emaranhado de pequenas calçadas, vielas e becos sem saída. No centro, a omnipresente mesquita amarela era a aranha que esperava, paciente. Sabia que mais tarde ou mais cedo todos iriam ter com ela. E uma vez caído prisioneiro nas malhas desta cidade, era muito difícil voltar a sair. Mas havia que partir em busca do desconhecido…
Kashgar era um desses locais contagiantes que convidavam à reincidência. Contrariando a máxima, “nunca voltes ao sítio onde foste feliz”, regressei a Kashgar, provavelmente, uma dezena de vezes.