
A SIC teve acesso ao processo clínico e ao certificado de óbito de Débora Peralta, a jovem de 25 anos que morreu no hospital Curry Cabral, em Lisboa, depois de ser submetida a um exame à vesícula.
Ponto por ponto, traçamos a cronologia do que se passou nos dias em que Débora esteve internada em dois hospitais da Unidade Local de Saúde de São José.
23 de Junho de 2023
Débora vai às Urgências do Hospital de São José com queixas de dor abdominal. É observada pela cirurgia geral, que deteta a presença de cálculos (pedras).
Tem indicação médica para fazer o exame denominado de CPRE (colangiopancreatografia retrógrada endoscópica), uma técnica de diagnóstico na área da gastroenterologia, que envolve a realização de uma endoscopia, para a observação da vesícula, dos canais biliares e dos canais pancreáticos. Ficou internada.
1 de Julho de 2023
Débora tem alta, com consulta agendada para dia 6.
6 de Julho de 2023
Na consulta, constatou-se um agravamento dos valores das análises. É proposto que seja internada no dia 10, para que no dia seguinte seja realizada a CPRE. Débora aceitou.
11 de Julho de 2023
Durante o exame, é identificado um cálculo (pedra) na via biliar principal, que foi removida “com um cesto de Dormia que provocou um traumatismo da papila”, localizada no duodeno, que é parte do intestino delgado.
Após o exame, Débora vomitou sangue por diversas vezes. É transferida do Hospital de São José para os cuidados intensivos do Curry Cabral, durante a tarde.
À SIC, Isabel Peralta, mãe de Débora, diz que a família não foi informada da transferência e teve “muitas dificuldades” em confirmar onde a jovem se encontrava e qual o seu estado de saúde. Isabel não conseguia falar com a filha desde o momento em que esta foi sedada para a realização da CPRE.
O quadro clínico da jovem complica-se e os médicos decidem entubá-la e sedá-la. Débora não voltou a acordar ou a falar com a família.
12 de Julho de 2023
Débora continua a vomitar sangue. São feitos novos exames, incluindo uma TAC à zona abdominal.
“Discutiu-se o caso com as equipas de urgência interna de gastroenterologia, cirurgia geral e radiologia de intervenção tendo sido excluída a indicação para laparotomia exploradora para identificação e reparação da perfuração do duodeno”. Ou seja, os médicos decidem não operar e tratar a infeção que avançava com medicação.
14 de julho de 2023
A situação agrava-se. É colocado um dreno a Débora, através do qual é recolhido líquido bilioso, que seguiu para análises.
15 de julho de 2023
É drenado mais líquido, em maior quantidade.
“Discutiu--se novamente com a equipa de cirurgia de urgência interna o controlo do foco infecioso de forma mais eficaz uma vez que a situação clínica da doente era grave sem melhoria após a drenagem”.
Mais uma vez, “ficou decidido que se mantinha a atitude conservadora”.
16 de Julho de 2023
Os médicos voltam a discutir o caso e “decidiu-se avançar para a laparotomia”. Isabel recorda que a família foi chamada ao hospital para verem Débora, antes da cirurgia.
A jovem entra no bloco operatório pelas 20h00.
17 de Julho de 2023
À 01:10, segundo consta no certificado de óbito, é declarado o óbito. A família de Débora recebe a chamada horas depois, durante a manhã.
O que diz o certificado de óbito?
Débora não foi autopsiada.
“Disseram-me que a autópsia ia demorar uma a duas semanas. Eu não consegui esperar”, conta Isabel Peralta, que acredita agora que a intenção era desmotivar a família de procurar respostas.
“Queriam ver se eu me esquecia. Nunca, enquanto viver, me vou esquecer disto”, desabafa a mãe de Débora.
No certificado, sobre a causa da morte, lê-se:
Parte I
A) Choque séptico refractário com disfunção multiorgânica
B) Peritonite serobiliar
C) Perfuração do duodeno retroperitoneal e pancreatite aguda
Parte II
Colangite, obesidade, CPRE recente com lesão da via biliar que motivou choque hemorrágico e distributivo.
No relatório clínico, consta ainda que o resultado dos exames ao líquido drenado só ficou disponível um dia depois da morte de Débora. Nele, constatou-se “o isolamento de uma bactéria rara nas vias biliares em especial numa doente jovem, sem procedimentos invasivos prévios na via biliar”.
O que fez a família?
Isabel Peralta apresentou uma reclamação no hospital Curry Cabral, em resposta à qual recebe, pela primeira vez e através de uma carta, os pêsames da parte da unidade hospitalar. A família apresentou também queixa-crime.
O hospital abriu um processo de inquérito na altura, mas que acabou por ser absorvido pelo inquérito aberto pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) que, quase dois anos depois, concluiu o relatório e na última sexta-feira deu conhecimento das suas conclusões a Isabel Peralta e à advogada que representa a família de Débora na Justiça.
A SIC revelou as conclusões desse relatório, na qual o instrutor aponta ilícitos disciplinares a sete médicos - incluindo um diretor de serviço - por durante o internamento de Débora terem, na maioria dos casos, atuado com negligência grave, uma parte por omissão. A IGAS considera, nessas mesmas conclusões, que deveria ter sido decidido avançar para um intervenção no bloco operatório, na chamada “janela de oportunidade”.
Débora deixa dois filhos, um menino e uma menina, hoje com 6 e 7 anos. A família aguarda agora que o Ministério Público conclua a sua investigação.