Foi com uma "solenidade menor", como lhe chamou a bloquista Joana Mortágua, que o Parlamento celebrou esta sexta-feira os 50 anos do direito pleno de voto para as mulheres portuguesas. Sem Presidente da República, com o Governo representando apenas por dois secretários de Estado (Igualdade e Assuntos Parlamentares) e as galerias de honra sem convidados, todos os partidos escolheram deputadas para discursar (exceto o CDS, que não as tem) . E todas lamentaram o que ainda falta fazer para que as mulheres estejam no plano de igualdade com os homens. incluindo na política.

"Este percurso tem sido demasiado longo e demasiado lento", lamentou Teresa Morais, do PSD e vice-presidente da Assembleia da República, que já apresentou propostas de alteração sobre a composição de comissões parlamentares para que tenham mais representação de deputadas e não aconteça, como lhe aconteceu há mais de 20 anos, ser a única mulher numa representação parlamentar e ser tomada como esposa de um deputado. "Estamos ao nível que estávamos em 2002", acentuou.

Na sua opinião, o passo que falta dar para a “verdadeira paridade” passa por mais exigência “na representação mínima obrigatória de mulheres e de homens nas listas eleitorais, e o problema resolve-se”. “Acabe-se com a conversa estafada de que é difícil trazer as mulheres para a política. Aprofundem-se as condições de equilíbrio entre a vida familiar, pessoal e profissional e elas virão, como já vieram muitas das deputadas que aqui hoje se encontram”, sustentou.

Também a socialista Alexandra Leitão alertou para um caminho que não está necessariamente livre de retrocessos, antes pelo contrário. "A misoginia está a crescer" e o parlamento "é muitas vezes palco disso mesmo", alertou quando subiu à tribuna e repôs o cravo vermelho que a deputada do Chega, que a antecedeu, tinha colocado de lado.

“A discriminação na capacidade eleitoral ativa foi eliminada há 50 anos, mas infelizmente ainda há fatores que afastam uma plena igualdade no que respeita à capacidade eleitoral passiva e limitam a participação das mulheres na vida política”, salientou a líder parlamentar do PS, sublinhando que atualmente apenas 76 dos 230 deputados são mulheres.


Críticas à organização e alertas sobre violência


Esta sessão evocativa do direito de voto universal para as mulheres, que lhes permitiu votar nas primeiras eleições livres em Portugal (as eleições para a Assembleia Constituinte, a 25 de abril de 1975) resultou de uma proposta do Livre, que lamentou a falta de empenho da Assembleia da República na sua organização. Salientando que ao parlamento não falta experiência na organização de sessões solenes, a líder parlamentar do Livre, Isabel Mendes Lopes questionou porque “é que a agenda não foi logo organizada com o senhor Presidente da República e com o Governo para estarem presentes”, e “como não saíram os convites a todas as associações e entidades que lutam diariamente pelos direitos das mulheres” para estarem presentes.

De cravo na mão, Isabel Mendes Lopes, considerou que ainda não existe "uma verdadeira igualdade, como se vê pelos números aterradores da violência doméstica", pelo número de pessoas que "acham normal" o homem controlar as finanças da mulher e até o voto e pelos que "continuam a achar que uma mulher só tem direito a opinar se tiver filhos" e pela "desigualdade salarial que continua a existir entre homens e mulheres".

Também pelo BE, a deputada Joana Mortágua – com uma camisola onde se lia “Lute como uma garota” – fez questão de notar “os ausentes, que demonstram que, sendo solene, esta cerimónia é de uma solenidade menor do que as outras”.

A bloquista lembrou o caminho do movimento sufragista e feminista até ao reconhecimento do sufrágio universal em 1974 e rejeitou que se queiram “impor retrocessos aos direitos das mulheres e oprimir a diversidade” sob “os mesmos pretextos que durante séculos excluíram e oprimiram as mulheres”. Afirmando que “o maior crime” das mulheres é “a rebeldia”, Joana Mortágua rematou: “Submissas nos querem, rebeldes nos terão”.


A líder parlamentar do PCP, Paula Santos, sublinhou a importância do direito ao voto das mulheres, mas ressalvou que este avanço não é suficiente por si só “se não estiverem criadas as condições para uma efetiva participação das mulheres na definição das opções políticas” e se as suas reivindicações não forem consideradas. Paula Santos defendeu também que as quotas de género “criaram ilusões de que a presença de mais mulheres eleitas significa que os seus direitos estariam mais defendidos” e que a “vida mostra que não é assim” por haver deputadas no parlamento que “rejeitam propostas concretas para reforçar os seus direitos”.

Pelo PAN, a deputada única Inês Sousa Real lamentou que ainda não exista “igualdade plena” entre homens e mulheres e lembrou que no ano passado 19 mulheres foram mortas em contextos de violência doméstica.

Também a deputada Manuela Tenda, do Chega, centrou a sua intervenção nas mulheres vítimas de violência doméstica, mas acabou o discurso com um ataque à "imigração descontrolada" que "expõe as portuguesas a ameaças no seu próprio país".

Mariana Leitão, candidata presidencial e líder da bancada liberal, alertou que “as mulheres continuam a ser oprimidas, reprimidas e excluídas, postas à margem de sociedades sem acesso à educação, sem acesso ao mercado de trabalho, forçadas a uma submissão completa à família e inseridas em sociedades onde não têm direitos ou liberdade”. “Por isso, hoje deve ser mais do que um dia evocativo, deve ser também um dia de reflexão sobre os desafios que persistem e sobre as ameaças concreta que em diversos países e contextos políticos colocam em risco a liberdade das mulheres, muitas vezes de forma violenta e sistemática”, salientou.

Pelo CDS, o deputado João Almeida afirmou que o seu partido se orgulha “muito da defesa que faz e fez sempre do papel das mulheres na vida pública” e não aceita “lições daqueles que, noutros dias e noutras circunstâncias, não têm a coragem ou a frontalidade de dizer mulher e inventam pessoa que isto ou pessoa que aquilo”. O deputado centrista – o único homem que interveio na sessão - assinalou que o partido e bancada parlamentar já foram liderados por mulheres, e afirmou que o CDS deu “muitos outros lugares de destaque a mulheres muito antes de outros partidos o fazerem”.


Aguiar-Branco otimista, mas com avisos aos partidos


A contrastar com o discurso da maioria das deputadas sobre o muito que há ainda a fazer, o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, congratulou-se pelo caminho já feito. “Quem havia de dizer que aqui estaríamos, 50 anos depois, mais próximos de que este assunto passe a ser um não-assunto. Cada vez mais óbvio, cada vez mais consensual”, elogiou, depois de citar os nomes de muitas mulheres, de vários quadrantes políticos.

Apesar dos elogios, o presidente do parlamento reconheceu que “a política, vezes demais, é um mundo fechado à presença feminina”, algo que não tem razão de ser. “Os estudos dizem-nos que as mulheres votam mais que os homens. O problema não é, assim, seguramente, das mulheres, do seu alheamento da causa pública. É mesmo de como a ação política se estrutura”, criticou.

Assim, para Aguiar-Branco a responsabilidade “é dos partidos, que precisam de definir melhores mecanismos de recrutamento” e do parlamento, que “precisa de cuidar melhor da relação com a sociedade e o território”. “É da progressiva fraca reputação inerente à política e ao seu exercício, de que muitos fora e dentro dela, contribuem para a sua revisão sistemática em baixa e que afasta tanta e tanta gente. Especialmente, aqueles, aquelas que já se habituaram a estar longe, bem longe da política”, lamentou, a terminar uma sessão que começou com o hino nacional a ser entoado numa das galerias de honra pela cabo-adjunto Lina Rodrigues, da Orquestra Ligeira do Exército, numa sala em que os arranjos florais de múltiplas cores foram dos poucos sinais de que não era um dia normal de plenário.