
John Rapley e Peter Heather são os autores de “Porque Caem os Impérios”, um livro com poucas páginas para o imensa premissa com que se apresenta: comparar a ascensão e a queda do Império Romano com o estado atual do Império Ociental, como os autores apelidam o grupo de países que dominaram a economia no pós-Segunda Guerra.
Em turnos alternados e fuso-horários complementares, os dois académicos têm-se revezado em entrevistas para tentar explicar por que razão o Ocidente está a começar a apresentar sintomas das mesmas maleitas que fizeram ruir outros colossos económico-culturais da nossa História.
Rapley, economista político na Universidade de Cambridge, falou com o Expresso dias depois de Trump ter congelado por 90 dias as taxas alfandegárias que impôs a todos os países do que exportam mais para os Estados Unidos do que aquilo que lhes compram, que é mais ou menos o mundo todo. Isso não quer dizer que estas taxas não acabem por prejudicar mais o núcleo do império do que as suas periferias - e, no final, será Trump a a capitular, antecipa o investigador.
Depois de Trump ter apresentado as suas taxas, economistas, presidentes de bancos, grandes empresários e líderes mundiais arquitetaram um plano e lá conseguiram convencer o Presidente a refrear os ímpetos. Mas foi só quando lhe disseram que podia vir aí uma recessão que ele parou para escutar, por ter medo que a sua imagem fique manchada pela queda do que considera ser o seu império. Ainda vai a tempo?
O John e o coautor deste “Porque Caem os Impérios”, Peter Heather, que estuda o último período da Antiguidade, não se conheciam, só de nome, antes de terem um dia, por acaso, começado a cruzar as vossas áreas de estudo: o John a globalização e Peter a queda do império romano. Onde é que estes mundos se cruzam?
Cruzámo-nos na terceira lei de Newton, aquela que diz que, por cada ação, há uma reação de igual força, mas na direção oposta. Eu vivi e trabalhei parte da minha vida em países em desenvolvimento, portanto nas periferias da globalização, e o Peter estudava a influência das regiões periféricas do império romano no seu desenvolvimento e, em última análise, no seu enfraquecimento. Ora a minha investigação tratava de analisar de que forma a expansão dos espaços económicos, dos impérios económicos, leva a que as economias dos países em desenvolvimento possam, com o tempo, fazer frente ao núcleo, à metrópole.
E é isso que está a acontecer ao império ocidental?
Sim, a periferia está a crescer muito mais rapidamente do que o império em si, o que acontece em quase todos os impérios que estudámos, com diferenças mais ou menos significativas. Numa primeira fase há um movimento de capital da periferia para o núcleo, mas depois o dinheiro começa a ir do núcleo para a periferia. Eu estava a analisar um modelo económico e o Peter estava a criar um modelo político, mas ambos dizemos a mesma coisa: o dinamismo começa no centro do império e depois move-se para as zonas que um dia esse império dominou. Por exemplo, as armas que os bárbaros usaram para atacar Roma foram obtidas, o conhecimento para as fazer foi obtido, durante anos e anos de trocas comerciais entre Roma e as suas regiões-satélite, os seus súbditos mais afastados.
"Como vivi grande parte da minha vida em países em vias de desenvolvimento, estes comportamentos só me fazem lembrar algumas das ditaduras africanas. São regimes onde para que alguma coisa se resolva é preciso ter acesso direto ao Presidente"
Fala-se muito de declínio do Ocidente, normalmente a retórica vem dos líderes que são considerados nossos inimigos, como Vladimir Putin. Estamos mesmo em declínio?
O Ocidente está em declínio económico de um ponto de vista relativo, sim. E isso está a acontecer desde o início do novo milénio. As pergunta que fizemos para chegar a esta conclusão foi: qual foi a evolução do peso do império ocidental no total da economia mundial? Por volta de 1999, o seu pico, representava ⅘ de toda a produção, agora está nos ⅗ e em queda todos os anos. Não quer dizer que o ‘relativo’ se torne total, não tem de acontecer, mas está perto de ser total em países que querem, lá está, tornar-se impérios, ou têm essa narrativa dos tempos perdidos.
Qual é então o ciclo de vida dos impérios?
Os impérios, ou a maioria dos impérios que são economicamente expansionistas, passam por este ciclo de vida, que é a ideia básica que já expliquei: os impérios exploraram a periferia em benefício do núcleo mas, nesse processo, desenvolvem inadvertidamente a periferia. Na antiguidade, isso assume a forma de uma capacidade militar, a formação de um Estado, a aquisição de recursos, tecnologia militar, etc. Na modernidade, o campo de batalha é mais diplomático e comercial do que militar. Graham Allison [cientista político norte-americano] desenvolveu uma teoria chamada a ‘armadilha de Tucídides’, segundo a qual um império ou um Estado em ascensão entra sempre em guerra contra um Estado em declínio, e usa-a para explicar a inevitabilidade de uma guerra entre a China e os Estados Unidos. Ora, eu não acredito no determinismo da armadilha de Tucídides, mas a ideia básica é interessante, porque está a decorrer uma guerra entre os EUA e a China, mas é uma guerra comercial e acho que a China vai ganhá-la.
A China vai ganhar a batalha das taxas alfandegárias?
Sim. Ou seja, os Estados Unidos acabarão por se render, mas Trump vai chamar-lhe ‘a arte da negociação’ ou algo do género [referência ao título do livro de Trump: “A Arte da Negociação”], vai dizer que é o melhor negócio que algum dia foi feito, mas não vai ser. Não vai vencer a China.
Então, depois de uma suposta negociação, vai tudo voltar às taxas antigas, é isso?
Se negociarem, vai ser nos termos da China. Trump está sempre a dizer que está à espera de uma chamada da China, mas os chineses estão a dizer: ‘bom, liguem-nos quando quiserem falar’. Já disseram que ele é bem-vindo à China, será bem recebido. Mas acho que a China está bastante preparada para isto, há anos que se preparam, anteciparam-se. A Casa Branca, por outro lado, não tem uma estratégia, estão todos a improvisar à medida que Trump vai inventando novas medidas. Partiram do princípio de que se o Presidente dissesse: ‘saltem!’, todos os países do mundo responderiam: “ok, até que altura?”. Isso não aconteceu.
"Acredito que a democracia está em crise, mas crise não significa que esteja perto do colapso. Vou usar a palavra no sentido grego: crise como ponto de viragem, como algo que nos coloca pertante uma escolha".
Parece que há uma isenção temporária para telemóveis, chips, computadores…
É uma isenção temporária, sim, mas tudo muda de uma hora para a outra. A maior economia do mundo depende do estado de espírito em que está Trump, se alguém o chateia ele vai vingar-se. Como vivi grande parte da minha vida em países em vias de desenvolvimento, estes comportamentos só me fazem lembrar algumas das ditaduras africanas. São regimes onde para que alguma coisa se resolva é preciso ter acesso direto ao Presidente. Se o elogiarmos temos direito a alguma leniência, senão o nosso negócio é taxado ou penalizado de outra forma. Há alguma verdade nas análises que temos visto sobre a terceiromundização em curso nos Estados Unidos.
Economia a qualquer custo?
Tal com eram os valores da racionalidade e a aprendizagem do latim que faziam de um homem em Inglaterra um discípulo de Roma, também no Ocidente de hoje, de França à Nova Zelândia, nos habituamos a ouvir dizer que há uma partilha de valores: comércio livre, direitos humanos, democracia, etc. Alguns destes valores têm testados, até atacados. Continuamos ligados por estes valores comuns o “conceito” de Ocidente está em risco?
O grande problema são as condições económicas de uma fatia crescente da população ocidental. Acho que isso define o que estamos a atravessar nos países ocidentais. Mas sou um otimista. Acredito que a democracia está em crise, mas crise não significa que esteja perto do colapso. Vou usar a palavra no sentido grego: crise como ponto de viragem, como algo que nos coloca pertante uma escolha. E esta é uma das coisas que eu e o Peter quisemos explorar no livro. Podemos tentar agarrar-nos à nossa prosperidade económica a todo o custo. Ou então podemos tentar preservar os nossos valores a todo o custo. É este o debate que está a acontecer nos países ocidentais, na Europa Ocidental e na América do Norte, na Austrália, na Nova Zelândia, etc. Alguns populistas radicais assentam a sua noção de democracia nas palavras do filósofo alemão Carl Schmitt, que defendia a ideia de que, ao elegermos um líder, ele encarna o povo, e não deve prestar atenção aos burocratas e aos juízes, porque eles não são eleitos pelo povo.
“Este tipo de governo não é exclusivo de Roma, e volto a lembrar-me aqui das ditaduras africanas dos anos 70, ou os regimes latino-americanos dos anos 50, onde era tudo altamente pessoalizado. E é sempre esta ideia, desde há milénios, de que o imperador, o presidente, o líder é o recipiente da vontade do povo e por isso pode fazer o que quiser”
É mais ou menos a filosofia de Trump e também, aparentemente, de muitos dos defensores de Marine Le Pen que raramente põem em causa os factos da acusação, antes tentam desautorizar os juízes.
Sim, está a revelar-se popular. Mas eu diria que não está a aumentar em todo o lado. Está certamente a ganhar mais terreno nalguns países do que noutros. No Canadá, por exemplo, há dois meses, esperava-se uma vitória esmagadora de um partido liderado por uma espécie de versão canadiana de Trump [os conservadores de Pierre Poilievre]. E então Trump aparece e diz que vai fazer do Canadá o 51º estado e os canadianos, de repente, parecem ter acordado para uma espécie de fervor patriótico. E duvido que não sofram uma derrota esmagadora agora [eleições a 28 de abril]. Tudo graças a Trump. Uma outra coisa que quero dizer, e que tem sido algo ignorada: a democracia espalhou-se a grande parte do mundo, ainda que não seja perfeita em quase lado nenhum. Um bom exemplo é a África do Sul. Se olhamos para muitos países africanos onde, há 30 anos, a democracia não estava em muito boa forma, agora está a avançar. Os problemas que África do Sul está a ter com a administração Trump têm que ver com a defesa de princípios que, num primeiro momento, recebeu do Ocidente.
China: um novo império?
A China aparece agora quase como o parceiro estável, o menino bem comportado da globalização, o defensor da ordem internacional baseada em regras. A China já foi um império. Considera que pode voltar a ser o centro dinamizador de uma periferia de países, como os países africanos, o sudeste asiático, etc, ou já estamos completamente aí e a China já é um império outra vez?
Interessante, mas penso que não, a China não é um império como os outros foram e nem creio que o modelo de império chinês alguma vez tenha sido assim, na medida em que nunca tentaram exportar a sua língua, a sua cultura, a povos que consideram etnicamente e culturalmente demasiado distantes. Isso não quer dizer que não imponham a sua vontade pela força a uighurs, até sobre Taiwan há uma certa força sempre visível de pressão, mas não tentaram levar para África o seu sistema educativo, por exemplo, a sua cultura. As pessoas que foram educadas no Senegal colonial, lembram-se de livros que começavam com frases como: ‘os nossos antepassados gauleses, etc, etc’. Era suposto serem franceses e ponto final. Eu agora estou na África do Sul e em quatro horas posso estar em Maputo ver a bela arquitetura portuguesa. Os chineses estão mais felizes em continuar a forjar acordos, quase sempre nos seus termos, é verdade, do que a tentar impor novas Chinas por aí.
A China tem armas que muitos outros países não têm para dar resposta a este período atípico. O resto do Ocidente terá de se unir a Pequim?
Bom, em primeiro lugar não sei se será assim tão atípico. Penso que o isolacionismo nos EUA veio para ficar. A verdadeira mudança de jogo foi a eleição de novembro porque Trump não escondeu o que ia fazer e recebeu um mandato popular para pôr em prática o que disse que ia fazer, e a questão aqui é que ele disse mesmo. As pessoas podem dizer que nunca imaginaram que ele fosse para a frente com tudo aquilo, mas não podem dizer que ele escondeu as suas ideias políticas.
“Parte do que complica as coisas é que, ao contrário de alguns dos outros países, onde há um surto de populismo, a esquerda na América, o Partido Democrata, está mais preocupado em evitar a ascensão da esquerda do que em evitar a ascensão de Trump e outros como ele”
E avisou que queria pessoas leais…
Exatamente. Ele foi muito explítico ao dizer que a lição que aprendeu com a sua primeira administração foi que as pessoas do ‘sistema’ são desnecessárias, o que ele queria, e conseguiu, foi contratar seguidistas que fazem o que ele diz sem questionar. No primeiro mandato ele sentiu que ainda estava a ser impedido de fazer o que realmente tinha pensado, que estavam ali uns burocratas a impor entraves, a dificultar. O interessante será saber se o resto daquilo a que chamamos Ocidente se vai unir e encontrar uma forma de reforçar os seus laços para resistir a esta mudança para um populismo radical.
O imperador Trump?
Achei muito previdente no livro, apesar de ele se reportar, na maioria das suas páginas, a acontecimentos que aconteceram há mais de 2000 anos, aquela parte em que dizem que o império romano, a certa altura, já era só o clube dos amigos, uma coisa gerida para dar mais poder aos já poderosos. Essa é também uma fraqueza que se pode encontrar no Ocidente?
É engraçado que mencione isso, porque ainda ontem estava a falar com o Peter, que por acaso está nos Estados Unidos, e ele disse-me: ‘John, temos de fazer uma segunda edição, porque temos mesmo um imperador na Casa Branca’. É mesmo muito reminiscente, mas o que se passa nos Estados Unidos agora, ou o equivalente ao que se passa nos Estados Unidos agora se reportarmos ao tempo do império romano, não aconteceu na parte final do império, foi mais no meio que tivemos Nero e Calígula. Foram déspotas, mas a sua chegada ao poder não pressagia a queda do império. Este tipo de governo não é exclusivo de Roma, e volto a lembrar-me aqui das ditaduras africanas dos anos 70, ou os regimes latino-americanos dos anos 50, onde era tudo altamente pessoalizado. E é sempre esta ideia, desde há milénios, de que o imperador, o presidente, o líder é o recipiente da vontade do povo e por isso pode fazer o que quiser.
Esquerda norte-americana mais preocupada em impedir Sanders que Trump
Disse numa entrevista que a vitória dos populismos traz “oportunidades”. O que é que quer dizer com isso?
Era metade a brincar, metade a falar a sério. Não custa nada estarmos atentos à possibilidade de que experiências como o Brexit possam deslegitimar outras experiências análogas, certo? Creio que chegará o dia em que o Brexit será revertido. E enquanto não é, acabou com ideias como ‘Frexit’, ‘Polexit’, etc.
“Numa democracia temos o governo que merecemos. Consigo sentir uma enorme empatia pelas pessoas que são vítimas de decisões que não tomaram. Mas quando ouço, por exemplo, um agricultor do Idaho dizer que vai perder a sua quinta, que está na família há quatro gerações, e depois diz que votou em Trump, lamento, não vou derramar lágrimas por ele”
Como um antídoto?
Foi um ótimo antídoto. O Peter brinca e diz que o resto dos europeus têm de nos agradecer. Já passámos por muitos problemas. Mostrámos que o Brexit é uma coisa estúpida, para que outras nações não tenham de repetir o erro. E a mesma coisa acontecerá com Trump no poder. Isso não quer dizer que não venha outro Trump, porque, como já disse, eu acho que os Estados Unidos romperam decisivamente com o seu passado.
E acho que parte do que complica as coisas é que, ao contrário de alguns dos outros países, onde há um surto de populismo, a esquerda na América, o Partido Democrata, está mais preocupado em evitar a ascensão da esquerda do que em evitar a ascensão de Trump e outros como ele. Perante Trump não reclamam, perante Bernie Sanders [senador democrata do Vermont], fazem de tudo para garantir que ele não se torna mais importante. Tudo isto me leva a dizer que uma das formas de acabar com o populismo é deixá-los estar no poder durante alguns anos, pela simples razão de que as suas soluções mágicas, o que eles dizem que vão fazer pela economia, simplesmente não podem fazer. E, uma vez em funções, a coisa vai desfazer-se tão rapidamente como a agenda de Trump.
Mas durante esse tempo de governo é bem provável que consigam modificar as instituições para sempre, ou quem sabe acabar com eleições…
Sim, fora esse cenário, claro. Eu não digo que esse cenário não seja terrivelmente preocupante para mim, é muito preocupante que as pessoas ouçam alguns destes radicais, que têm uma mensagem cheia de ódio. Mas, até certo ponto, lamento, numa democracia temos o governo que merecemos. Consigo sentir uma enorme empatia pelas pessoas que são vítimas de decisões que não tomaram. Mas quando ouço, por exemplo, um agricultor do Idaho dizer que vai perder a sua quinta, que está na família há quatro gerações, e depois diz que votou em Trump, lamento, não vou derramar lágrimas por ele, tenho outras que preciso de derramar. Não é possível dizer: ‘nós não sabíamos que ele ia fazer isto e aquilo’. Mas como não sabiam? Ele disse.
Imigração ou pensões? Deixemos os populistas governar e decidir
Mas não estamos aqui precisamente porque, a partir dos nossos centros urbanos, das nossas boas universidades, as pessoas das periferias como o agricultor no Idaho não são visíveis? As mudanças económicas que a globalização foram amplas e rápidas, a imigração modificou algumas cidades e há quem não veja isso com bons olhos…
Correto, mas é uma questão de escolhas. Há uma transição económica profunda a acontecer e isso tem que ver, num grau muito substancial, com a demografia. Fazemos esta pergunta no livro: queremos agarrar-nos à nossa cultura, como os japoneses, por exemplo, onde quase não há estrangeiros? Podemos fazer isso, mas o preço é o declínio económico. Não se pode simplesmente, quando se tem uma percentagem crescente da população que já não trabalha, quando há o aumento do rácio de dependência de serviços de saúde e segurança social, querer fechar os países. É simples. Quando os populistas tomam o poder e lá se mantêm acabam por ter de abandonar as promessas sobre imigração ou as promessas sobre pensões, ou uma coisa ou outra. Os americanos poderiam safar-se, de certa forma, com este tipo de nativismo durante algum tempo, se ele não o tivesse associado às tarifas.
Qual é a relação?
Sendo o dólar a moeda de reserva mundial, toda a gente ia continuar a comprar títulos do Tesouro dos EUA. Basicamente, existia um acordo tácito entre os Estados Unidos e o resto do mundo que se pode resumir mais ou menos assim: ‘vocês emprestam-nos dinheiro e nós usamo-lo para comprar as vossas coisas’. E Trump quer quebrar parte desse acordo, dizendo: ‘vamos deixar de comprar as vossas coisas, mas continuamos a querer que nos emprestem dinheiro’. Mas o que se passa é que a única razão pela qual os outros países têm dinheiro para emprestar à América é porque têm excedentes comerciais. Então o que é que estes países vão fazer com esses dólares? Ou os investem nos seus próprios mercados ou compram dívida norte-americana. Um quarto do mercado de títulos do tesouro nos EUA é detido por estrangeiros, o que significa que se Trump começar a dizer: ‘saiam daqui estrangeiros’, é isso que vai acontecer a eles e ao seu dinheiro.
A economia de Ícaro
E existe um novo modelo de crescimento que ache que poderia substituir o que tínhamos, uma vez que, como alegam, o que existe no Ocidente está em declínio?
Para o declínio relativo não, não há um modelo novo, pelo menos que eu conheça. Estou agora a investigar um tema que é o limite até ao qual uma economia, um país, pode crescer. Há um ponto em que o rendimento se torna tão elevado, chamo-lhe a economia de Ícaro [a figura mitológica grega que voou demasiado perto deo sol e queimou as asas] que o custo para preservar a riqueza começa a corroer o rendimento até que, em última análise, a riqueza recua, ou pelo menos abranda bastante. O declínio relativo faz parte da economia, está inserido no código das economias, mas chega-se a um pico em que, para continuar a crescer, ficamos com uma sociedade dividida, zangada e amarga porque as desigualdades vão acentuar-se.
Já defendeu que falhámos numa coisa essencial, a taxação. Quer explicar por que razão considera que podia ter sido uma forma de impedir o declínio relativo?
Um dos problemas do desenvolvimento é que, quando os rendimentos das pessoas aumentam, elas normalmente não pensam continuar a trabalhar em fábricas, ou os seus filhos não vão trabalhar em fábricas. E por isso, as sociedades ocidentais começaram a deslocar o fabrico e a montagem dos produtos em outros países. Isto fez com que, no Ocidente, pudéssemos especializar-nos na propriedade intelectual, na conceção e na criação de novos produtos, para os quais teríamos a propriedade intelectual. Tem funcionado bem, o problema é que levou a uma concentração de rendimentos nas mãos daqueles que detinham a propriedade intelectual, pequena parte da população. Nós poderíamos ter optado por um sistema de tributação progressiva, que dissesse que quem beneficiou desse sistema teria de devolver à sociedade uma parte do que ganhou com estas leis. A globalização é uma coisa boa, os mercados livres são uma coisa boa. Mas o que precisamos fazer é criar um sistema fiscal e, uma vez que temos uma economia globalizada, precisamos de tratados fiscais internacionais. Permitimos um elevado grau de concentração de rendimentos com base no falso argumento de que Mark Zuckerberg criou sozinho o Facebook, mas isso é um disparate, tudo o que Mark Zuckerberg criou foi possível graças às despesas do Governo, a criação da internet foi um projeto do Pentágono. Isto é só um exemplo.