O jornalista norte-americano Evan Gershkovich, condenado esta sexta-feira na Rússia a 16 anos de prisão, tinha construído uma reputação de repórter determinado a descrever, apesar dos riscos, um país remodelado pelo conflito na Ucrânia e pela repressão.
Correspondente de 32 anos do Wall Street Journal, foi detido a 29 de março de 2023 em Ecaterimburgo e julgado num caso de uma gravidade sem precedentespara um jornalista estrangeiro desde o fim da URSS com base numa acusação não fundamentada de espionagem. E foi nesta cidade dos Urais que foi condenado no final de um inusual processo rápido, de apenas três audiências à porta fechada.
Na sala de audiências, estava de braços cruzados no momento do veredicto, com a cabeça rapada -- o corte de cabelo habitual dos presos na Rússia -- e uma barba a crescer no seu rosto cansado.
Evan Gershkovich é acusado pelas autoridades russas de "espionagem" por ter recolhido informações sobre uma fábrica de tanques russa por conta da CIA. Gershkovich, a sua família, o seu patrão e o seu país rejeitam estas acusações, que a Rússia nunca provou, e denunciam o caso como fictício e de tomada de reféns.
O Kremlin voltou a recusar-se a comentar a situação hoje de manhã, alegando tratar-se de "casos sensíveis".
O humor nas suas cartas
Em prisão preventiva em Moscovo, na prisão de Lefortovo, gerida pelo FSB (os serviços secretos russos), Gershkovich explicou nas suas cartas dos últimos meses que sofria com a monotonia da sua detenção. Mas também disse que estava bem-disposto, usando muito humor nas suas cartas e mantendo-se a par dos últimos mexericos sobre as carreiras e vidas amorosas dos seus amigos.
Disse ainda que aguardava a sentença para ser transferido para uma colónia penal onde, teoricamente, deveria ter mais atividades e convívio social, bem como ver o céu com mais frequência.
Em Lefortovo, os reclusos estão muito isolados e são mantidos nas suas celas durante 23 horas por dia.
Família fala de "resiliência e força inabalável"
Durante as audiências em que a imprensa foi autorizada a filmá-lo durante alguns minutos, sem falar com ele, o repórter cumprimentava os jornalistas que conhecia com um sorriso ou fazendo um sinal de coração com as mãos.
Em dezembro de 2023, a sua família falou com admiração da sua "resiliência e força inabalável" numa carta publicada pelo Wall Street Journal.
Ao contrário de muitos jornalistas norte-americanos que deixaram a Rússia na sequência do ataque à Ucrânia em fevereiro de 2022, Gershkovich optou por continuar a fazer reportagens. Interessado em descrever a forma como os russos estavam a viver o conflito, falou com familiares de soldados mortos, críticos do Presidente Vladimir Putin e analisou os efeitos das sanções na economia russa.
Na altura da sua detenção em Ecaterimburgo parecia estar a trabalhar em temas sensíveis: a indústria de armamento russa e o grupo paramilitar Wagner.
Extrovertido e sociável
Originário de Nova Jérsia, perto de Nova Iorque, Gershkovich tinha-se distinguido pela qualidade das reportagens na Rússia, o país das suas raízes, onde conhecia as regras e as superstições. Os seus pais, judeus soviéticos que fugiram da URSS no final dos anos 70, incutiram-nas nele.
Depois de se ter licenciado em inglês e filosofia, optou por fazer o caminho inverso e instalou-se na Rússia. Em 2017, perfeitamente fluente em russo, deixou um emprego como assistente editorial no New York Times para se juntar ao Moscow Times, o principal meio de comunicação social de língua inglesa em Moscovo, que foi proibido em julho pela justiça russa.
Durante cerca de quatro anos, fez reportagens sobre a repressão da oposição, as catástrofes ambientais, os estragos da covid-19 e as tradições russas, como a arte da 'bania', o banho de vapor russo (sauna) que costumava frequentar assiduamente.
Naturalmente extrovertido, sempre pronto a rir, sabe "pôr todas as suas fontes à vontade, porque as faz sempre sentir que se preocupa profundamente com as suas histórias", disse à AFP, em abril de 2023, Pjotr Sauer, jornalista do diário britânico The Guardian e amigo íntimo de Gershkovich.
Adepto de futebol e jogador amador
Quando entrou para o gabinete da AFP em Moscovo, no final de 2020, continuou nesta linha, contando a história de um opositor russo em campanha a partir da prisão, ou o quotidiano dos bombeiros que lutam contra os vastos incêndios da Sibéria.
Este adepto de futebol e jogador amador também mergulhou na história do Sheriff Tiraspol, um clube da região separatista moldava pró-russa da Transnístria, que jogou na Liga dos Campeões em 2021.
No início de 2022, entrou para o prestigiado Wall Street Journal, algumas semanas antes do ataque russo à Ucrânia. Cheio de humor, mesmo quando estava na prisão, brincou com a sua mãe numa das suas cartas, referindo-se às papas russas que ela lhe preparava em criança, um prato que enchia as casas e as celas de todo o país. Segundo ele, esta cozinha materna preparou-o, "para o bem e para o mal", para a prisão.
ONU avisa que detenção de Gershkovich "coloca grandes inquietações"
O Presidente dos EUA, Joe Biden, prometeu continuar a trabalhar para a libertação de Evan Gershkovich.
"Evan suportou uma terrível experiência com uma força notável. Não cessaremos os nossos esforços para o trazer de regresso a casa".
Na ONU, um porta-voz do secretário-geral considerou que a detenção de Gershkovich "coloca grandes inquietações" relacionadas com a liberdade de expressão.
O gabinete dos direitos humanos da ONU considera ainda que os jornalistas deverão exercer a sua profissão "num ambiente seguro, sem receio de represálias", segundo indicou Farhan Haq em declarações aos 'media', acrescentando que a ONU apela à libertação "de todos os jornalistas detidos na Rússia simplesmente por terem feito o seu trabalho".
Em Varsóvia, a opositora russa Yulia Navalnaya também denunciou a condenação "injusta" do jornalista norte-americano.
Charles Michel critica "farsa da justiça" na Rússia
O presidente do Conselho Europeu cessante, Charles Michel, denunciou a "farsa da justiça" na Rússia.
"O medo que o Kremlin tem da verdade e da liberdade é um sinal de fraqueza. Apelamos à libertação imediata de Evan Gershkovich", afirmou Michel numa mensagem na rede social X (antigo Twitter) que rematou com a 'hashtag' "Liberdade Evan Gershkovich".
Processo judicial invulgarmente rápido
A justiça russa condenou esta sexta-feira a 16 anos de prisão o jornalista norte-americano Evan Gershkovich, acusado de espionagem por alegadamente ter acedido a informação secreta sobre a indústria militar do país.
Durante a audiência, que teve lugar no tribunal regional de Sverdlovsk, a acusação pediu 18 anos de prisão de segurança máxima. O processo judicial foi invulgarmente rápido, consistindo em apenas três audiências, duas das quais esta semana, o que a imprensa associou diretamente ao interesse de Moscovo em encurtar o prazo para uma futuratroca do jornalista condenado por um prisioneiro russo.
As audiências de quinta-feira e de hoje, antecipadas a pedido da defesa, deveriam ter sido realizadas em meados de agosto. Gershkovich, detido há 477 dias, não admitiu a sua culpa e afirmou, tal como o seu jornal, que estava apenas a cumprir o seu dever profissional quando foi detido.
O jornalista de 32 anos recebeu a mesma pena que Paul Whelan, um antigo fuzileiro naval norte-americano também condenado na Rússia por espionagem em junho de 2020.