Jimmy Carter, o 39º presidente dos Estados Unidos, deixa um legado profundo, especialmente no seu combate pela superação de conflitos, pela persistente defesa dos instrumentos para uma governação democrática (eleições livres, liberdade dos media, papel das organizações da sociedade civil) e pela busca inabalável pela paz. Desempenhou um papel central na mediação da paz no Médio Oriente, quer como Presidente, nomeadamente enquanto autêntico “honest broker” dos Acordos de Camp David, entre Sadat e Begin, quer depois da saída da Casa Branca, enquanto verdadeiro referencial moral do processo turbulento e assimétrico das relações entre Israel e a Palestina.
Em 1996, tive a oportunidade de testemunhar o peso da sua postura e das palavras que proferia. Estávamos a 20 de Janeiro, as mesas de voto na Cisjordânia, onde me encontrava, tinham encerrado há pouco tempo, e informaram-me que Jimmy Carter iria fazer a sua declaração preliminar sobre as eleições dali a pouco mais de meia hora. O embaixador Paulo Barbosa, que me tinha cedido o segundo motorista da Embaixada e o carro de serviço à Chancelaria para que eu, seu “Deputy”, passasse o dia das eleições a visitar mesas de voto e centros de observação eleitoral, acompanhando quanto possível o enviado da União Europeia para o processo eleitoral, o ex-Presidente Mário Soares, disse-me para ir ter com ele ao ‘National Hotel’, em Jerusalém-Leste, onde a conferência de imprensa de Carter iria ter lugar. Sob chuva torrencial, noite já caída, o motorista conseguiu seguir, com grandes riscos em cada curva daquelas estradas das serras dos arredores de Jerusalém, as luzes azuis das escoltas do cortejo de viaturas onde seguia o ex-Presidente da República.
Toda a imprensa internacional, todos os correspondentes em Jerusalém e Telavive, toda a comunidade diplomática que acompanhava no dia a dia o processo de paz, enchiam por completo o “ballroom” do hotel. A observação das eleições tinha tido como organizadores essenciais o National Democratic Institute for International Affairs e o Carter Center, à frente dum contingente de muitas dezenas de monitores e observadores de eleições que tinha no próprio Jimmy Carter a personificação da atenção da comunidade internacional a este passo essencial do processo de paz, fortemente abalado com o assassinato escassos dois meses antes de Itzak Rabin.
A “bênção” que Carter então deu à forma como tinham decorrido as eleições, defendendo com o seu prestígio, autoridade e reputação a democraticidade do ato, malgrado deficiências que ele próprio enumerou, foi muito importante. A sua presença validou os resultados das eleições, reafirmando Yasser Arafat como presidente e inspirando um sentimento de esperança no povo palestiniano. (A delegação da União Europeia marcou também a sua própria conferência de imprensa naquele dia, com muito menos câmaras de televisão e flashes de fotógrafos, há que confessar, com Mário Soares a considerar igualmente que a democracia fora respeitada e que as eleições tinha sido livres e bem disputadas. Lembro-me de lhe ter ouvido um comentário aparte algo irritado contra aqueles que “pareciam exigir que as primeiras eleições de sempre na Palestina fossem como na Suécia”).
Os nossos caminhos voltaram a cruzar-se em 2008, tinha sido eu, entretanto, colocado como Representante de Portugal junto da Autoridade Palestiniana, numa receção em Ramallah, organizada para diplomatas ali acreditados, quando o ex-Presidente americano voltara numa das suas visitas regulares à região. Debaixo dum toldo, no terraço do último andar dum edifício de escritórios onde o Carter Center tinha uma pequena delegação, fui apresentado a Jimmy Carter (que me apresentou o filho, já não muito jovem) e tive oportunidade de trocar com ele algumas palavras, recordando que o tinha ouvido, no “Nacional”, naquela noite de chuva impossível da vitória eleitoral esperada de Arafat. A esperança não era a mesma, concordou. O “antes”, de 1996, e o “depois” , aquilo que constatávamos agora, eram de grande contraste. Havia uma mudança palpável nas expectativas em relação à paz entre Israel e os palestinianos, e os desafios continuavam gritantes.
Devo acrescentar que naquela altura Carter era um homem que as autoridades em Israel tentavam ignorar. Carter tinha tido a coragem e a ousadia de incluir a palavra “apartheid” no título do seu então livro mais recente, publicado dois anos antes, “Palestine: Peace not Apartheid”, e muitos em Israel não lhe perdoavam o ter posto o dedo na ferida do que realmente se passava nos territórios ocupados palestinianos.
É perturbador e triste, à luz da situação actual de uma Cisjordânia em que proliferam oncologicamente os colonatos e duma faixa de Gaza que lembra Dresden em 1945, reler o que Carter escreveu na altura da saída desse seu livro, em 2006, num artigo intitulado “Speaking Frankly About Israel and Palestine” defendendo aquilo que concluíra de anos de contacto e reflexão sobre a questão palestiniana: “As muitas questões controversas relacionadas com a Palestina e o caminho para a paz para Israel são intensamente debatidas entre israelitas e noutras nações — mas não nos Estados Unidos. Nos últimos 30 anos, testemunhei e experimentei as severas restrições a qualquer discussão livre e equilibrada dos factos (...) e relutância em criticar quaisquer políticas do governo israelita (...) Seria quase um suicídio político para os membros do Congresso defenderem uma posição equilibrada entre Israel e a Palestina, sugerir que Israel cumpra o direito internacional ou falar em defesa da justiça ou dos direitos humanos dos palestinianos. Muito poucos se dignariam a visitar as cidades palestinianas de Ramallah, Nablus, Hebron, a Cidade de Gaza ou mesmo Belém e a conversar com os residentes sitiados. O que é ainda mais difícil de compreender é por que razão as páginas editoriais dos principais jornais e revistas dos Estados Unidos exercem uma autocontenção semelhante, totalmente contrária às avaliações privadas expressas com bastante força pelos seus correspondentes na Terra Santa.”
Ao refletirmos sobre a sua vida, Carter serve como um emblema duradouro de paz, resiliência e integridade moral. A sua influência estendeu-se muito para além do seu mandato presidencial, tocando inúmeras vidas, incluindo a minha, inspirando a busca agora quase quixotesca de compreensão e coexistência no Médio Oriente.
Que descanse em paz.