As histórias de Rui Cardoso Martins levantam-se muito cedo. Costuma ser na primeira energia da manhã, lá pelas 5 horas, quando o sol ainda não se anunciou e boa parte da cidade ainda dorme ferrada, que ele se senta ao computador para escrever.
Rui Cardoso Martins é romancista, além de outros “istas”, como jornalista, cronista, argumentista, humorista ou… dramaturgo e professor universitário.
Rui começou no jornalismo, foi repórter na fundação do jornal Público, e no início dos anos 90 andou por muitos países distantes a reportar as grandes tensões mundiais, como a guerra civil da Bósnia e o cerco de Sarajevo, as primeiras eleições livres na África do Sul, e esteve no barco “Lusitânia Expresso” na missão “Paz em Timor”.
Enquanto mestre da crónica, Rui Cardoso Martins recebeu dois prémios Gazeta por “Levante-se o Réu”, pelos relatos brilhantes das peripécias e histórias que se passam nos tribunais portugueses, com pessoas reais e crimes verdadeiros, que mais parecem inventados ou produtos da melhor ficção. Ou que de tão surreais e surpreendentes ultrapassam muito a ficção. Sempre com uma capacidade admirável para registar num registo literário a justiça e a injustiça, o chocante e o caricato.
Nesta conversa em podcast, o escritor dá conta de como muitas destas histórias lhe ficaram na memória, como algumas frases que ouviu pareceram saídas da melhor literatura, como alguns relatos o deixaram muito triste, ou como outros o fizeram rir. E, por vezes, as duas coisas ao mesmo tempo, na sua dimensão tragicómica. Como é a vida.
Rui foi distinguido também duas vezes pelo Grande Prémio de Literatura da Associação Portuguesa de Escritores, a APE, pelo seu romance “Deixem Passar o Homem Invisível”, em 2009, e pelas suas crónicas, em 2016.
E já antes o seu primeiro romance “E se eu gostasse muito de morrer”, com um título retirado de uma frase de Dostoievski, dera muito que falar. Em 2024 publicou o seu 5º e último romance “As Melhores da Morte”, onde regressa ao protagonista do seu primeiro livro. Todos editados pela Tinta da China.
Consta que o notável escritor José Cardoso Pires o chegara a referir como “um tal rapaz novo que escrevia umas crónicas que ele apreciava muito, porque eram muito 'pá pá pá'”. O mesmo José Cardoso Pires que, em conversa com Lobo Antunes, nomeara o meu entrevistado “um cabrão que escreve”.
E, ao que parece, disse ainda: “O que se produz neste país é uma merda, mas este é bom e ainda por cima o cabrão além de dar-lhe bem, tem humor”. Imagino que esta frase tenha sido recebida por Cardoso Martins como uma espécie de prémio literário. O prémio dado por Cardoso Pires e Lobo Antunes: “Um cabrão como nós”. Não é para todos. Também este episódio é recordado por Rui Cardoso Martins, que fala destes e doutros mestres que o marcaram e serviram de referência.
Importa dizer que Rui Cardoso Martins já testemunhou e relatou guerras e tragédias, enquanto repórter internacional, revelou cedo talento para a escrita de humor. E Cardoso Pires já dizia que não acreditava existirem bons escritores sem humor.
Ora Rui sempre mandou forte na arte do riso e foi co-fundador das Produções Fictícias, e um dos criadores e autores do histórico programa de humor político da RTP “Contra- Informação”, que escreveu durante 14 anos, ficando para a história a frase que atribuiu a Pinto da Costa “Penso eu de que…”. Cardoso Martins explica neste podcast como se deu esta guinada para o humor, e como Pinto da Costa tentou retirar o programa Contra Informação do ar.
No currículo deste escritor e argumentista constam outros tantos programas de boa gargalhada como “Herman Enciclopédia” e “Estado de Graça” ou a série “Conversa da Treta”, com José Pedro Gomes e António Feio.
É tarefa difícil incluir tudo o que Rui tem escrito e feito numa só introdução. Até porque Rui assinou muitas histórias notáveis para televisão, cinema e teatro. Basta dizer que o seu trabalho esteve presente na entrega de 9 Globos de Ouro da SIC. É obra.
Recorde-se que, há 25 anos, Rui Cardoso Martins criou o argumento do filme Zona J, de Leonel Vieira, onde usou um pouco as armas de jornalista para se aproximar daquela população em Chelas, e a partir de uma história de amor interracial, dar a conhecer as dificuldades e as feridas de uma Lisboa invisível para a maioria dos portugueses, e de uma população que vive na pele o racismo, o preconceito e o desamor policial.
Rui foi também o autor do argumento do filme “A Herdade” (com Tiago Guedes), candidato a Leão de Ouro no Festival Internacional de Veneza 2019, ou do filme “Sombras Brancas” (com Fernando Vendrell) sobre a obra de José Cardoso Pires. Mais recentemente, trabalhou com João Canijo no argumento do díptico Mal-Viver/Viver Mal (Urso de Prata, Berlinale de 2023) e da série “Hotel do Rio”.
Rui afirma escrever contra as pessoas parvas e os ditadores em geral e as mulheres e os homens com as meninges douradas a cheirarem mal. E que escreve sobre “a ditadura das religiões e a obrigatoriedade da fé, que tanto mal faz às crianças da terra. Tenho respeito por Deus, mas se existe é má pessoa”.
Palavras de Rui Cardoso Martins. “Escrevo porque, apesar de tudo, há muitas mulheres e homens bonitos lá onde interessa. Escrevo a combater as conspirações da realidade, a meio desta frase lá está ela a conspirar, algures. Apesar de tudo, acredito que a vida triunfa, não escrevam ‘Fim’ antes de acabar a história. Sou um optimista, mas não percebo porquê. E se isto fosse fácil era para os outros, como dizem os marines e disse uma pessoa que amei.”
E Rui também diz: “Escrevo contra a maldade e a ignorância que estão dentro de mim. Escrevo também a favor delas, são adversários magníficos a quem foram dados muitos anos de avanço”.
A escrita Para Rui Cardoso Martins tem sido um mergulho no pior e melhor que há em si e nos outros? Esta é uma das perguntas que lhe são lançadas na primeira parte desta conversa em podcast.
A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.