
Anita Lasker tinha apenas 18 anos quando foi levada para o campo de concentração de Auschwitz. Ao ser despida, tatuada e ter a cabeça rapada, a jovem judia comentou que sabia tocar violoncelo e isso mudou o rumo da sua vida.
Anita Lasker-Wallfisch, agora com 99 anos de idade, é, de acordo com a BBC, a última sobrevivente da Orquestra Feminina de Auschwitz.
Dividir para subjugar
Os ideais do Nazismo tinham como principal objetivo a divisão social para oprimir aqueles que consideravam que não eram "arianos de raça pura". O foco da propaganda Nazi e da ação das forças militares eram os judeus e a família de Anita não foi exceção.
Nascida em Breslávia (que fazia parte da Alemanha, mas, depois da guerra passou para a Polónia), Anita aprendeu a tocar o violoncelo desde cedo e tinha duas irmãs mais velhas, Renata e Marianne. A mãe, Edith, era uma violinista reconhecida e o pai, Alfons, um advogado de renome.
Num documentário de 1996, Anita recorda que a sua família era "a típica família judia-alemã assimilada. Frequentávamos uma pequena escola privada e, de repente, ouvi dizer: 'Não dês a esponja ao judeu' e pensei: 'O que é isto?".
Com a difusão das ideias antissemitas de Hitler e a sua eventual subida ao poder em 1933, a vivência dos judeus em solo alemão, tornou-se cada vez pior e alvo de descriminação constante.
"O meu pai tinha combatido na frente de batalha na primeira guerra", contou Anita ao The Guardian . "Tinha a Cruz de Ferro e enganava-se a si próprio dizendo que não podia ser tão mau como parecia, mas aos poucos foi ficando tão mau quanto podia ser".
Em 1938, os pais de Anita já não conseguiam encontrar um professor de violoncelo na sua cidade que ensinasse uma criança judia, então mandaram-na para Berlim para estudar.
Mas, no dia 9 de novembro de 1938, a brutalidade vivida naquela que ficou eternizada como a "Noite de Cristal" (Kristallnacht), em que os Nazis, numa onda de violência, partiram janelas de casas, empresas e sinagogas judaicas, que depois roubaram, e ainda prenderam vários judeus, os pais de Anita decidiram trazê-la de volta para casa.
No ano seguinte, em 1939, a irmã de Anita, Marianne conseguiu escapar na missão de resgate de crianças, Kindertransport, que a levou para Inglaterra, mesmo antes do início da guerra. Marianne morreu pouco depois do final da guerra, ao dar à luz.
Mas foi em 1942 que a família de Anita se viu quase completamente separada. Em abril, os pais receberam uma ordem de se apresentarem numa determinada localização e foram levados para Izbica, um gueto de trânsito na Polónia, onde foram assassinados.
"Nunca saberei ao certo o que aconteceu, mas é possível que eles estivessem entre as pessoas que foram obrigadas a cavar as suas próprias sepulturas e que depois foram fuziladas", relembra Anita ao The Guardian.
Anita e a sua irmã Renata, foram postas num orfanato para crianças judias e forçadas a trabalhar numa fábrica de papel, de onde tentaram escapar, em setembro. Forjaram documentos e foram até uma estação de comboios, onde foram detidas pela Gestapo. Anita esteve presa durante 18 meses.
"A prisão não é um sítio agradável para se estar, mas não é um campo de concentração. (...) Ninguém nos mata numa prisão", explica Anita à BBC .
A prisão onde Anita estava, recebeu ordens para enviar todos os judeus para campos de concentração em 1943, devido a sobrelotação.
Chegada ao "inferno"
Anita foi posta num comboio em direção a Auschwitz e Renata foi também, mas duas semanas depois. A chegada ao campo foi chocante.
"Lembro-me que era muito barulhento e totalmente desconcertante. Não se fazia ideia de onde se estava. Barulho dos cães, pessoas a gritar, um cheiro horrível... Chegava-se ao inferno, de facto", recorda Anita à BBC .
A chegada seguia o padrão: Anita foi tatuada, a sua cabeça rapada, tudo por outros prisioneiros do campo de concentração, que, ao mesmo tempo, a inquiriam relativamente aos desenvolvimentos da guerra. Ela, como tinha estado presa, não sabia muito e, quando lhe perguntaram o que fazia antes da guerra, disse que tocava violoncelo.
"Oh, isso é muito bom. Talvez te salves", disse a Anita uma mulher, que a encaminhou para para Alma Rosé, a maestrina da Orquestra feminina de Auschwitz, que não tinha nenhum violoncelista.
"Enquanto eles quisessem uma orquestra, não nos podiam pôr na câmara de gás", diz ela. “Coisa que não era nenhuma estupidez, porque nós não éramos substituíveis. Alguém que carrega pedras é substituível”, disse Anita ao The Guardian .
Alma era exigia profissionalismo da orquestra, que tocava exclusivamente música militar, nas marchas de entrada e saída dos que trabalhavam foram do campo.
"Ela conseguiu que estivéssemos tão preocupados com o que íamos tocar e se estávamos a tocar bem, que temporariamente não nos preocupámos com o que nos ia acontecer. (...) Foi uma fuga para a excelência"
"(...) Penso que um dos ingredientes da sobrevivência é estar com outras pessoas. Acho que quem estivesse sozinho não tinha hipótese. (...) Acho que devemos a nossa vida à Alma. Ela tinha uma dignidade que se impunha até aos alemães. Até os alemães a tratavam como se ela fosse um membro da raça humana" , disse Anita à BBC .
Foi a orquestra que garantiu a sobrevivência de Anita, bem como da sua irmã, já que conseguia partilhar com ela a pouca comida que recebia.
A líder da orquestra morreu em abril 1944. Poucos meses depois, entre outubro e novembro, a orquestra parou de tocar, uma vez que as mulheres foram transferidas para Bergen-Belsen.
Outro campo, outra história
Anne Frank também estava em Auschwitz em 1943 e foi levada para Bergen-Belsen em novembro, onde acabou por morrer de febre tifóide.
"Não era de facto um campo de extermínio - era um campo onde as pessoas pereciam. Não havia câmaras de gás, não havia necessidade de câmaras de gás - só se morria de doença, de fome".
Anita relata que estiveram quase seis meses sem comer, quando as tropas britânicas chegaram ao campo de concentração em abril de 1945.
"Acho que mais uma semana e provavelmente não teríamos sobrevivido, porque não havia comida nem água", contou à BBC .
"Após a libertação, os aliados descobriram que havia lá comida. Eles (nazis) simplesmente não nos tinham dado", adiantou ao The Guardian .
Liberdade
Como Anita falava inglês, ela e a irmã tornaram-se interpretes do exército britânico e, em 1946, ambas foram viver para Inglaterra. Renata tornou-se jornalista e autora e foi viver para França em 1982 com o marido. Morreu em 2011. Anita continuou a carreira musical, tornando-se membro fundador da English Chamber Orchestra. Casou e teve dois filhos. Segundo a BBC, tinha jurado nunca mais voltar à Alemanha, mas, em 2018, foi convidada a ir a Berlim, falar no Parlamento.
"Como veem, quebrei a minha promessa - há muitos, muitos anos - e não me arrependo. É muito simples: o ódio é veneno e, em última análise, envenena-nos a nós próprios", disse Anita no Parlamento.
Anita Lasker-Wallfisch partilha o seu testemunho sempre que pode, tendo escrito um livro. Há também um documentário sobre a vida desta sobrevivente.