
Medicina como grande negócio
Um investimento de milhões num hospital privado tem que ser rentabilizado. O doente passa de um fim, em si mesmo, a um meio.
As regras do negócio na medicina, têm que ser totalmente diferentes das da venda de carros ou eletrodomésticos. A desigualdade entre parceiros é total: um dará o que tem e o que não tem para que lhe tirem a dor ou o salvem, ficando à mercê das exigências do “fornecedor”. O desequilíbrio é total. Não se pode negociar sob uma coação tão forte.
Os doentes passam a ser “clientes ou consumidores” que recorrem a fornecedores (health care providers) que lhes vendem cuidados, por vezes num pacote, como qualquer produto de conforto, sujeito às mesmas regras de publicidade. O consumo de cuidados de saúde, passa a ser estimulado através de propaganda pouco ou nada regulamentada.
Quando estamos doentes, queremos ser tratados como pessoas e não como consumidores pagantes, para que o nosso tratamento possa ser individualizado de acordo com os nossos valores. A medicina exige uma ética de máximos e não dos mínimos indispensáveis.
2-Os Hospitais públicos ou privados geridos como fábricas
Esta tendência tem origem multifatorial, sendo a mais determinante, o crescimento exponencial dos custos da medicina.
Corre-se o risco de que os cuidados comessem a centrar-se mais na contenção dos seus custos e/ou no lucro do que no bem das pessoas. Os critérios de avaliação destas unidades, publicas e privadas, passam a ser exclusivamente quantitativos. E os ganhos em saúde, não interessam? Já há ferramentas validadas para os avaliar. Até a terminologia usada traduz esta industrialização da medicina, designando-se em muitos hospitais públicos e privados a atividade cirúrgica ou de consulta externa como “linhas de produção”.
Lembro que a Clínica Mayo, considerada o melhor hospital do mundo, é uma instituição fundada pela família Mayo, sem qualquer fim lucrativo. Todos os proventos são investidos na qualidade assistencial e na inovação. E é por isso que continuam a haver mecenas a fazer em vida ou após a morte donativos muito avultados e frequentes a este Hospital. Também não é por acaso que neste país começam a aparecer cada vez mais hospitais sem fins lucrativos, pois quer médicos quer doentes querem fugir a um ambiente empresarial não consonante com os seus valores.
A degradação do setor público vai acabar por degradar também o setor privado, pois este deixa de ter concorrente e os médicos que vão para o setor privado ou social, vão ser formados em contextos de pouca qualidade. O inverso também poderá acontecer, se não existir uma alternativa ao serviço publico, decisores podem sentir-se mais “à vontade” para poupar custos com limitações á acessibilidade e à qualidade. Os prejudicados seremos todos nós.
3-A maioria dos portugueses não tem alternativas ao SNS.
E não se pense que são só os pobres e estes, infelizmente, são cada vez mais. Pelo menos toda a classe média ou seja quase todos nós, pois o custo de um seguro de saúde que nos garanta todos os cuidados que o SNS nos oferece, estará muito acima das nossas posses. Quantas vezes foram transferidos doentes de hospitais privados para a Unidade de Cuidados Intensivos e até para a enfermaria e mesmo para a consulta externa do hospital de S. João porque o plafond do seguro se esgotou. Infelizmente, já vi doentes recorrerem ao privado, por vezes com enorme sacrifício económico, por não conseguirem resposta atempada no SNS.
4-Concorrência publico/privado
Um Hospital privado pode contratar médicos oferecendo-lhes ordenados e condições de trabalho que no presente contexto são impossíveis no público. E fá-lo de um dia para o outro. As contratações no setor público demoram meses ou até anos. A titulo de exemplo, um hospital privado compra um aparelho Tomografia de Emissão de Positrões em poucas semanas. Um hospital público, leva anos e corre-se o risco de estar desatualizado quando finalmente chegar.
A teia burocrática de todo o setor publico em Portugal é tenebrosa porque pode paralisar toda a atividade do país, na Saúde e em muitas outras áreas. Ao SNS devem ser asseguradas as condições para que possa concorrer com o setor privado. Se tal não for acautelado, não auguro nada de bom para a nossa saúde. Sentirmos a segurança de que quando adoecermos vamos ter quem nos trate de forma acessível, atempada, competente e desinteressada, tenhamos ou não dinheiro, tem uma importância individual e coletiva, incomensurável, aumentando a coesão social e o sentimento de pertença e gratidão a uma pátria que nos oferece este bem.
Sei que para que isto seja possível é necessária uma economia que gere riqueza e mesmo que assim seja, continua a ser necessário que a sociedade e os seus governantes façam escolhas que vão, seguramente implicar renuncias.
Sentir que não conseguimos aceder ao SNS porque este foi esvaziado de recursos não respondendo atempada e adequadamente, nem ao setor privado por não termos dinheiro ou seguros com a cobertura necessária para o tratamento de que necessitamos ou termos de ouvir dizer num hospital do SNS que só tem consulta de especialidades fundamentais para daí a mais de um ano (e às vezes daí a vários anos) ou ouvir dizer, num hospital privado, a um filho que a sua mãe precisa de ser internada nos cuidados intensivos por uma iatrogenia sofrida nesse mesmo dia, nesse hospital que tem que depositar 22 mil euros. Ou ainda, ouvir dizer ao senhor que recorre ao hospital privado por uma intercorrência urgente mas sem importância, que será melhor passar lá a noite para vigilância e de imediato lhe solicitam o depósito de 3 mil euros pois ainda não têm autorização do seguro, arrepia-me. Estes e muitos outros, são casos reais do meu dia a dia.
Não será que o primeiro desígnio de um povo, seja trabalhar para ter uma saúde acessível, equitativa, competente e humana em que não sejamos tratados nem como um número da “linha de produção”, nem como um objeto de negócio, nem como alguém que espera meses ou até anos, por uma consulta de especialidade num hospital do SNS por não ter recursos para resposta atempada?
5- Será que é admissível que em 45 anos nenhum Governo tenha feito uma reforma de fundo no SNS para que ele possa continuar a existir servindo a população
O professor Fernando Araújo tentou e começou a fazê-lo mas foi-lhe intencionalmente e incompreensivelmente retirado o apoio politico para o fazer. Não se pense que os portugueses o esquecem.
O SNS era possível e bom para as circunstancias existentes no tempo em que foi criado, mas sem reformas caminha rapidamente para a inviabilidade. A mudança da nossa pirâmide etária, a exigência das pessoas em parte motivada pelo estimulo ou propaganda ao consumismo dos cuidados de Saúde, as expectativas exageradas no poder da medicina, os preços astronómicos de muitos tratamentos, entre outras causas, exigem a sua reformulação.
Portugal já não tem força para negociar preços com as grandes multinacionais da Indústria farmacêutica a não ser inserido num conjunto de países da EU, que terá força para negociar com estes gigantes.
6- No centro de tudo: a relação médico doente
É difícil de conceber que uma relação entre quem quer ajudar e quem pede ajuda, seja pautada por desconfiança e conflitualidade. A conflitualidade desumaniza completamente esta relação, encarece a medicina, desvia-a do doente focando-a na defesa do médico, e piora a sua qualidade técnica e humana. Mais uma vez, acredito que na origem deste fenómeno paradoxal, esteja uma revolta dos doentes e dos médicos contra sistemas públicos ou privados que não servem os seus valores, passando uns e outros, pela enorme frustração, a agredirem-se mutuamente.
7- Um apelo aos gestores públicos e privados e aos decisores políticos
Pede-se-lhes que nunca percam a noção de que qualquer serviço de Saúde tem que ter como motivação, o ideal de fazer bem aos outros, aspiração gravada no intimo de todos nós. Os ganhos materiais, políticos ou de carreira, deverão ser efeitos laterais, de um objetivo maior: servir o ser humano que sofre ou que tem medo de vir a sofrer. Qualquer iniciativa de ajuda social que perca o seu sentido humano, mais tarde ou mais cedo, fracassa.
Não pode haver boa prática médica sem virtude quer dos profissionais de saúde, quer dos gestores, administradores e decisores políticos.