O apelo direto do primeiro-ministro israelita ao secretário-geral da ONU para a retirada imediata da missão de manutenção da paz no Líbano tem suscitado amplas críticas, incluindo dos homólogos libanês e italiano. E seguiu-se a uma incursão violenta na base da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (FINUL), entretanto revelada.
“Senhor secretário-geral, retire as forças da FINUL para um local seguro. É preciso fazê-lo já, imediatamente”, declarou Benjamin Netanyahu, este domingo, num discurso em que interpelou diretamente António Guterres.
Poucas horas depois, a FINUL divulgou, em comunicado, que dois tanques israelitas invadiram uma base em Ramyah, no sul do Líbano, às 4h30 da madrugada (2h30 em Lisboa), destruindo o portão principal, enquanto as forças de manutenção da paz dormiam. “Os tanques partiram cerca de 45 minutos depois de a FINUL ter protestado, dizendo que a presença [militar israelita] estava a colocar as forças de manutenção da paz em perigo”, lê-se na nota.
Às 6h40 locais, houve vários disparos a cerca de 100 metros da posição da FINUL, no que aparentava ser um ataque com um agente químico, revela ainda o comunicado. E especifica que, “apesar de terem colocado máscaras de proteção”, 15 efetivos ficaram com “irritação na pele” e tiveram “reações gastrointestinais” depois de o fumo ter entrado na base, estando a receber tratamento.
O primeiro-ministro libanês condenou “a posição de Netanyahu e a agressão israelita contra a FINUL”. Para Najib Mikati, o “aviso” representa “um novo capítulo na abordagem do inimigo de desrespeito pelas normas internacionais”. Pelo menos cinco capacetes azuis ficaram feridos nos últimos dias durante os combates entre as forças israelitas e o Hezbollah, no sul do Líbano.
Numa conversa telefónica com Netanyahu, a primeira-ministra italiana apelou à “aplicação plena” da resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU, destacando a necessidade urgente de desanuviar o conflito. Giorgia Meloni, cujo país é um dos principais contribuintes para a missão de manutenção da paz na fronteira entre Israel e o Líbano, classificou como “inaceitáveis” os ataques contra a FINUL.
A resolução citada por Meloni apela à cessação total das hostilidades entre Israel e o Hezbollah, à retirada das forças israelitas do Líbano – substituindo-as por forças libanesas e da FINUL destacadas para o sul do país – e ao desarmamento de grupos, incluindo o Hezbollah. A resolução, aprovada por unanimidade em 2006, é do Conselho de Segurança, sendo deste órgão que depende a missão, pelo que o secretário-geral da ONU não tem jurisdição sobre a FINUL.
O mandato desta missão, formada em 1978, é renovado anualmente pelo Conselho de Segurança, tendo sido prorrogado muito recentemente, a 28 de agosto último. Dela fazem parte atualmente 10.058 efetivos de 50 países. Indonésia (com 1231 efetivos), Itália (com 1068) e Índia (903) são os maiores contribuintes, sendo que Portugal também contribuiu no passado.
No comunicado divulgado após a invasão da última madrugada, a FINUL destaca que “a entrada numa posição da ONU é mais uma violação flagrante do direito internacional e da resolução 1701 do Conselho de Segurança”. E acrescenta que pediu uma “explicação” a Telavive para “estas violações chocantes”. As forças israelitas têm a “obrigação de garantir a segurança do pessoal e dos bens da ONU” na fronteira com o Líbano, lembra, afirmando que, na véspera, lhe foi negado “um movimento logístico crítico”.
Andrea Tenenti, porta-voz da FINUL, sublinhou que “não há solução militar” para o conflito entre Israel e o Hezbollah. O responsável disse ainda temer que os ataques israelitas contra o grupo xiita libanês, apoiado pelo Irão, se transformem, em breve, num “conflito regional com um impacto catastrófico para todos”.
Para o antigo funcionário da ONU Francis Martin O’Donnell, “pedir que a FINUL se retire da chamada zona de perigo é uma exigência inacreditável, quando a zona de perigo vem de Israel, que hoje mesmo invadiu um dos postos avançados da FINUL, em desrespeito absoluto pelo direito internacional, pelas resoluções do Conselho de Segurança, pelo direito humanitário internacional e, na verdade, pelo bem-estar e segurança do pessoal da ONU, que está a servir no local com grande coragem e diligência para cumprir o mandato do Conselho de Segurança da ONU, a resolução 1701”.
Em conversa com o Expresso, o ex-coordenador residente das Nações Unidas na Sérvia-Montenegro (2000-2004) e na Ucrânia (2004-2009) e membro vitalício do grupo de reflexão irlandês Instituto de Assuntos Internacionais e Europeus refere tratar-se ainda de “um exemplo chocante do total desrespeito de Israel pela opinião internacional, pela Carta das Nações Unidas e pelas suas obrigações enquanto Estado-membro da ONU”.
Tal “não significa que Israel não tem o direito de se defender, claro que tem”, sublinha. Mais: “Também não significa que o mandato da FINUL foi cumprido. Não foi. Nem por Israel, que não completou a sua retirada do território libanês, incluindo das Quintas de Shebaa, nem pelo Líbano, nem pela ONU, porque não conseguiu desmilitarizar o país a sul do rio Litani”. E “uma das principais razões” é “a interferência do Irão”, pelo que “a eliminação do fator iraniano é a chave fundamental para uma resolução pacífica da situação no Líbano – e mesmo no Médio Oriente –, tal como seria relativamente ao Hamas em Gaza”.
Netanyahu afirmou ser “tempo de retirar a FINUL dos bastiões e das zonas de combate do Hezbollah”, lamentando que o Exército israelita já tenha feito este pedido, apenas para ser “constantemente rejeitado” – uma recusa, disse, “destinada a fornecer escudos humanos aos terroristas do Hezbollah”. Mas, ao fazer este apelo direto a Guterres, o primeiro-ministro israelita já tinha conhecimento da invasão da madrugada de um dos postos da missão da ONU, que só depois das declarações de Netanyahu deu conta do ocorrido.
Martin O’Donnell considera que foi “uma posição extremamente cínica e hipócrita do Governo israelita – e, em particular, do primeiro-ministro – e das Forças de Defesa de Israel”. Em jeito de conclusão, o antigo funcionário das Nações Unidas deixa um apelo: “Se alguma vez houve um momento em que a comunidade internacional precisou de apoiar plenamente o secretário-geral António Guterres, este é o momento de o fazer, de se erguer e dizer o quanto apoia a sua coragem, bravura e determinação em ver cumprida a missão da ONU no Líbano e, na verdade, noutros locais do Médio Oriente.”