Por estes dias, ao passar os olhos pela tradução portuguesa d’A Consciência de Zeno (um livro que recomendo intensamente a quem – como eu – sofre de procrastinação crónica), fui assaltado por uma nova palavra que me irrompeu o léxico com a força que a própria sonoridade não justifica.
Ancilosar.
1) Causar ou sofrer ancilose ou privação de movimento numa articulação
2) Manter ou ficar parado em determinado estado. = CRISTALIZAR
As definições sinónimas do Priberam remeteram-me para uma ideia de ausência de movimento, uma espécie de inércia por incapacidade física ou psicológica. Como as presas que desmaiam de susto quando são atacadas por um predador, acabando por acelerar o seu triste final.
Um pouco mais tarde, ainda no mesmo dia, lia uma notícia do Expresso que nos elucidava a restruturação da política externa de Donald Trump, que decidira fechar algumas das embaixadas e consulados em países africanos que ainda vivem situações de instabilidade política ou conflito armado. Isto quando a presença chinesa na economia do continente africano atinge níveis recorde e continua a crescer.
Perante isto, voltou-me à cabeça a tal palavra - ancilose. Lembrei-me que Trump está ancilosado. Contudo, a sua reação não é a de uma presa cristalizada pelo medo. A sua ancilose tem outra origem. A sua ancilose é a de um predador que em momentos de fragilidade não compreende qual a presa que poderá saciar a sua fome e por isso continua a mexer-se muito e com muita veemência para manter a ilusão que ainda é um predador feroz, quando, na verdade, foi despromovido à categoria das presas ancilosadas. Pior, é uma presa que não aceita a sua fragilidade.
Perante a hecatombe das tarifas Trump no comércio mundial, a decisão de retirar embaixadas e consulados do continente africano pode parecer um erro mínimo, apenas mais um fait-divers na longa lista de políticas de crescente isolamento da nova administração norte-americana, em nome da eficiência que o DOGE e o seu paladino Musk apregoam (resta-nos saber quem é, dentro da Casa Branca, o fiel paladino de quem).
No entanto, a situação é mais complexa a longo-prazo. Os patriotas americanos que viram em Trump o seu Neil Armstrong numa corrida que agora não é ao espaço, mas sim à hegemonia tecnológica e económica, estão a compreender gradualmente que elegeram Buzz Aldrin. Não é que seja uma personalidade irrelevante da história mundial, no entanto ficará sempre conhecido como o segundo homem a chegar à lua.
A todos os alvos económicos e geoestratégicos da administração Trump, a China chegou primeiro. A quebra de hegemonia norte-americana é bem mais profunda e está mais enraizada na economia internacional do que aparenta e Trump é a presa e não o predador. Por isso, mexe-se muito para impressionar – manter a ilusão de competência a nível externo para legitimar o seu poder interno.
Checkers vs Chess, para usar uma metáfora bem americana. Os EUA estão a jogar damas, enquanto a China joga xadrez. Enquanto os EUA olham para a manutenção da hegemonia com a voracidade do imediato, a China olha para 2050, para 2100, para o infinito e mais além (para os fãs de Buzz).
A realpolitik de Trump está desatualizada perante a silenciosa, mas efetiva, diplomacia chinesa, alicerçada na expansão tecnológica e económica, que se tornou mais credível junto das instituições internacionais do que a esquizofrenia diplomática de Trump e dos seus tech bros. O facto de a China ter um conflito crónico à sua porta, com a questão da soberania e reconhecimento de Taiwan e, mesmo assim, ser vista como um parceiro mais fiável do que os EUA para a manutenção da paz multipolar, diz mais sobre a progressiva auto-sabotagem dos EUA do que do próprio sistema internacional.
Não há coincidências. Portanto, não é por acaso que a China tem investido na última década biliões na economia africana, continente que Trump está a escolher abandonar durante o atual mandato. Xi Jinping mata dois coelhos com uma só cajadada. Impulsiona a imagem chinesa como país substituto dos EUA na garantia da paz no continente – apesar de essa paz ser ainda uma miragem a curto-prazo, e tornar a economia destes países dependente de capital chinês, que irá beneficiar dos recursos naturais e humanos que resultarem de uma hipotética estabilidade futura.
O cenário é catastrófico se aliarmos a esta influência chinesa em África, os sino-consórcios para exploração de terras raras na Gronelândia, que vigoram há muitos anos e que colhem da sociedade civil da ilha uma maior taxa de aceitação porque não ameaçam a autonomia gronelandesa. Bem como o ataque de Trump às universidades domésticas que mais produzem patentes no ramo das tecnologias e biotecnologias, conduzindo a um braço de ferro entre a academia norte-americana e um governo anti-ciência.
Isto enquanto a Academia de Ciências Chinesa, que possui instituições espalhadas ao longo de todo o território, continua a produzir pedidos de patentes a um ritmo frenético e aumenta as parcerias científicas com os países vizinhos, bem como com novos países no Ocidente, que servirão de exilio académico a brilhantes e promissores cientistas americanos que não se identificam com as posições de Trump.
Na busca de cumprir aquilo que prometeu, Trump está a ancilosar-se de forma cada vez mais profunda num local de revivalismo dos EUA dos anos dos pós-guerra, sem compreender (nem ele, nem os seus amigos) que o seu isolamento económico e político da esfera internacional fará com que todas as outras potências – entre elas a China e a União Europeia – se realinhem, estabeleçam parcerias e estruturem um sistema multipolar baseado na consolidação das respetivas da economias num mundo em que os EUA ocuparão o espaço de nova ameaça à estabilidade internacional.