Foi publicado no passado dia 30 de dezembro o decreto-lei que altera o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial (RJIGT), com o qual o Governo espera criar estímulos ao aumento da oferta de solo a destinar à construção, como contributo relevante para atenuar o problema da crescente dificuldade de acesso à habitação. Sem menosprezo por diversas e graves questões que o conteúdo desta proposta coloca, inclusive em termos de legalidade, interessa num primeiro momento identificar e analisar as opções de fundo que lhe subjazem e a natureza dos efeitos que resultariam da sua aplicação.
No seu preâmbulo, parte-se de uma referência à drástica redução do número fogos concluídos em construções novas para habitação familiar verificada entre 2002 e 2022 para exprimir, sem qualquer argumentação que a fundamente, a convicção de que «a maior disponibilidade de terrenos facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis». Ora, não são conhecidos estudos que demonstrem factualmente uma carência generalizada de solo urbano não edificado; pelo contrário, existe documentação oficial de natureza cartográfica (DGT) e de índole estatística (INE) que permite concluir que, mesmo nos concelhos onde as pressões demográficas e/ou urbanísticas são mais intensas, existem dentro do seu atual solo urbano significativas áreas ainda não edificadas e, portanto, passíveis de acolher nova edificação.
Na realidade, é por demais sabido que o problema não reside na inexistência de oferta de habitação nas diversas áreas urbanas, incluindo as mais centrais, mas sim na ausência de oferta de habitação a preços compatíveis com os níveis de rendimento de amplas camadas de população que aí desejariam habitar (ou permanecer). Segundo o referido preâmbulo, a esta problemática pretende-se responder com a criação de um novo regime especial de reclassificação de solo rústico para solo urbano, desde que se trate de iniciativas em que «pelo menos 700/1000 da área total de construção acima do solo” seja destinada “a habitação pública ou a habitação de valor moderado».
Assim, ao invés de adotar políticas e medidas que procurem estancar ou, pelo menos, atenuar a tendência de despovoamento das áreas urbanas mais consolidadas ditada pelas atuais lógicas do mercado, preconiza o Governo, como solução alternativa, fomentar a criação de melhores condições de acessibilidade à habitação em territórios até agora integrados em solo rústico, expeditamente reclassificados para solo urbano, os quais na realidade só existem nas periferias dos grandes centros urbanos ou, nos casos de Lisboa e Porto, nas periferias das cidades que constituem a coroa exterior das respetivas aglomerações metropolitanas.
Para o efeito, é introduzido o novo conceito de “Valor Moderado”, definido com base nos valores das medianas de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional no seu conjunto (Mediana Nacional) e para cada concelho (Mediana Concelhia)[1]. Assim, um valor que alegadamente se destina a moderar os preços do mercado é definido por referência aos próprios preços de mercado e fica diretamente associado à evolução destes. Ora uns simples cálculos[2] em torno desta figura permitem concluir que:
- Num grande número de concelhos, o dito Valor Moderado será um valor superior a grande parte, senão mesmo à totalidade, dos preços praticados livremente no mercado;
- O Valor Moderado só será na realidade inferior ao valor da Mediana Concelhia num reduzido número de concelhos, para o que contribui o facto de o valor da Mediana Nacional estar mais próximo dos valores mais altos do mercado, fazendo subir o valor numérico do Valor Moderado e consequentemente reduzir ainda mais aquele já pouco expressivo número de concelhos.
Por outro lado, dado o padrão global de distribuição espacial dos preços de venda no mercado, com estes a decrescerem do centro para as periferias, os valores de mercado praticados nas áreas urbanas mais periféricas de um dado concelho, por serem os mais baixos, serão por sistema inferiores aos da respetiva Mediana Concelhia e, por maioria de razão, ao designado Valor Moderado. E assim, na generalidade (senão na totalidade) dos casos de reclassificação do solo ao abrigo do aludido regime especial, verificar-se-á que o Valor Moderado vai ser um valor consideravelmente superior aos valores de venda que o promotor do empreendimento conseguirá obter no mercado livre pelo que, na realidade, toda a área de construção poderá ser vendida sem qualquer constrangimento de preços motivado pelo Valor Moderado.
Consequentemente, para beneficiarem do “regime especial de reclassificação para solo urbano”, os promotores não terão de prestar qualquer contrapartida efetiva a favor de objetivos de interesse público ou social, porque, ainda que fiquem obrigados a destinar ao uso habitacional um mínimo de 70% da área de construção, na realidade irão poder comercializar esta a preços livres de mercado, e porque, dado a percentagem mínima acima referida ser inferior à percentagem de área destinada a habitação da generalidade das urbanizações das periferias urbanas, o cumprimento desse requisito ocorrerá espontaneamente, não constituindo um condicionamento penalizador.
Em conclusão, a aplicação deste “regime especial de reclassificação para solo urbano” (i) será completamente ineficaz no que respeita ao cumprimento do objetivo proclamado de provocar um efeito de disponibilização de habitação a preços mais acessíveis que os praticados pelo mercado nas áreas onde irá ocorrer, podendo até induzir a sua subida, ao atribuir oficialmente o selo de “moderado” a um valor claramente superior àqueles; e, pelo contrário, (ii) terá a grave consequência de, sem contrapartidas reais de benefício público ou social, permitir uma proliferação fragmentada de urbanizações e empreendimentos imobiliários em solo rústico, com base em decisões casuísticas não sustentadas em critérios de avaliação consistentes (estes constam dos planos diretores municipais e restantes planos territoriais, cujo cumprimento é deliberadamente arredado dos procedimentos instituídos com este diploma).
Torna-se assim clara a filosofia de “ordenamento” do território que subjaz às alterações agora introduzidas: trata-se tão só de conferir, a todo o solo rústico que não esteja submetido a um regime restrito de proteção, o estatuto de solo urbanizável, isto é, solo rústico suscetível de ser transformado em solo urbano a qualquer momento e apenas em função das conveniências do interessado.
A. Manuel Miranda é presidente do Conselho Diretivo da Associação Portuguesa de Urbanistas
[1] O Valor Moderado corresponde, na maioria dos concelhos, ao valor da Mediana Nacional; na generalidade dos restantes, a 125% da respetiva Mediana Concelhia; e nalguns poucos, a 225% da Mediana Nacional (apenas quando a Mediana Concelhia é superior a este valor)
[2] A fundamentação mais detalhada dos cálculos e apreciações críticas constantes do presente texto pode ser consultada no site da Associação Portuguesa de Urbanistas: https://apu.pt | separador “publicações e documentos” (acesso livre)