Aos 71 anos, Margarida Boto é uma das estudantes mais velhas da Universidade do Minho. É aluna finalista de uma segunda licenciatura, agora em Arqueologia, depois de ter concluído a primeira em Filosofia, com a idade em que muitos pensam já na reforma, aos 64 anos. Não conta ficar por aqui. No próximo ano letivo, inicia um mestrado em Filosofia Política.

A vida de Margarida deu muitas voltas até a sentar nos bancos da faculdade. Começou a trabalhar como ajudante de técnica de farmácia ainda muito jovem, em Lisboa, e apesar de considerar a profissão “muito mecânica", com “pouco ou nada” a dever à criatividade, foi assim que viveu por mais de 40 anos, até à morte precoce da filha.

Voltar a estudar foi a tábua de salvação de quem percebeu estar "condenada a viver”, após o desgosto. Para ela, a melhor forma de persistir foi voltar às salas de aula e recuperar um “sonho deixado na gaveta durante décadas”.

"Um dos motivos que também me fez querer estudar, foi poder contar a história da minha família", recorda a estudante de arqueologia, que considera “não ter sido a única heroína” ao longo do processo.

"Não tenho o mérito todo, tive pessoas amigas que me estimularam e ajudaram a concretizar os meus sonhos", acrescenta, frisando o apoio que recebeu por parte de um amigo, que se ofereceu para lhe pagar os estudos, e a força transmitida pela madrinha de batismo - com quem foi criada - e que a desafiou a entrar na universidade.

Margarida Boto a fazer figuração no Presépio Vivo de Priscos, em Braga. Paralelamente aos estudos, a estudante minhota procura ter um papel cívico ativo na sociedade
Margarida Boto a fazer figuração no Presépio Vivo de Priscos, em Braga. Paralelamente aos estudos, a estudante minhota procura ter um papel cívico ativo na sociedade Expresso

Podem ser a exceção, mas existem nas universidades portuguesas outros estudantes séniores, motivados por outras histórias ou desafios, mas igualmente empenhados em mostrar que o desejo de aprender não tem idade. O Expresso ouviu alguns deles, testemunhos de quem estuda ou estudou nas universidades de Lisboa, Coimbra e Braga, e que aceitou partilhar as conquistas e adversidades de quem (muitas vezes) podia ser avô ou avó dos colegas sentados na cadeira ao lado.

Sonho e realização

Teresa Martins, investigadora na área do envelhecimento ativo e docente do INED, um colégio particular no Porto, adianta que o sonho, associado à realização pessoal, e a procura por mais conhecimento são tendencialmente as motivações principais que levam os estudantes “não tradicionais” a querer voltar às salas de aula. Por ”não tradicionais" entendam-se estudantes com mais de 30 ou 40 anos – o Expresso procurou estatísticas deste universo junto de várias instituições do ensino superior, mas na realidade os dados são bastante dispersos, não havendo números oficiais.

“Por norma, é com o intuito de melhorar a sua participação ativa nas comunidades" onde se inserem, continua Teresa Martins. "Portanto [os estudantes seniores] investem no período da reforma ou mesmo da pré-reforma para o fazer”, conclui a investigadora, que elenca outras razões associadas à opção: a vontade de experimentar um ambiente académico e a interação com estudantes mais novos, algo corroborado por Margarida Boto. O contacto com os colegas mais novos foi um fator que a ”ajudou emocionalmente" a ultrapassar a perda da filha.

O mesmo objetivo, uma história parecida

Manuel Saraiva é outro aluno universitário tardio. Aos 69 anos de idade, é licenciado em História pela Universidade de Lisboa, e está prestes a concluir um mestrado em História Moderna e Contemporânea.

O seu percurso tem traços em comum com o de Margarida Boto. Ambos começaram a trabalhar muito novos, aos 12 anos, e ambos já na altura com a ambição de aprender mais e seguir a educação formal, o que as dificuldades económicas não permitiram.

“Nasci numa pequena aldeia, onde havia a conceção de que ‘o filho de um cavador, cavador seria’ e dado que os meus pais eram analfabetos, não era esperado que eu fosse estudar”, recorda Manuel Saraiva, salientando que os pais foram inclusivamente criticados pelas pessoas ao redor, “por quererem ser mais do que aquilo que era suposto”.

Paralelamente aos estudos, Manuel Saraiva é dirigente do Clube Oriental de Lisboa em vários mandatos e em diferentes cargos, particularmente presidente da Mesa da Assembleia Geral
Paralelamente aos estudos, Manuel Saraiva é dirigente do Clube Oriental de Lisboa em vários mandatos e em diferentes cargos, particularmente presidente da Mesa da Assembleia Geral Expresso

A precariedade económica é apontada como o principal motivo para não prosseguir os estudos, observa Teresa Martins, o que é confirmado por uma investigação de Maria Gonçalves, socióloga e investigadora no Centro de Investigação da Universidade de Aveiro,

"Nunca vivi com os meus pais, e as pessoas que me criaram (os pais da minha madrinha de batismo) não tinham possibilidade de me pagar os estudos, que implicava a deslocação diária entre a minha terra, Sousel, e Fronteira ou Estremoz", comenta Margarida Boto, que já adulta, e depois da morte da filha, chegou a estar inscrita numa universidade em Lisboa, mas nunca frequentou as aulas.

As dificuldades "em cima da mesa"

Mas, para os estudantes seniores, há outros obstáculos. Dificuldades como a falta de memória para decorar a matéria e para acompanhar o ritmo de aprendizagem, por exemplo. Os processos comunicativos, nomeadamente, a linguagem técnica e tecnológica são referidos também como um problema. Afinal, muitos destes alunos voltam a estudar após mais de 20 anos sem pegar numa caneta ou ler um livro, além da natural evolução do vocabulário, com novos termos e expressões técnicas.

"No início cheguei a duvidar se conseguia fazer o curso, era muita coisa para estudar e ler. Lembro-me que na unidade curricular de Estética, já no 3º ano, tinha cerca de 900 páginas para ler", recorda Margarida Boto.

No caso de Manuel Saraiva, a adaptação ao espaço físico foi igualmente uma dificuldade, e grande. Descreve que se sentiu como um "ovni" assim que chegou à universidade.

Por mais que as motivações associadas à vontade de estudar depois de reformado sejam idênticas, assim como as dificuldades associadas ao “desafio” - sem esquecer o receio de não ser aceite pelos colegas mais novos - “é preciso ter em conta a complexidade que cada uma destas pessoas representa”, assinala a investigadora Maria Gonçalves.

"As trajetórias desses indivíduos acabam por ser mais complexas, devido à variabilidade e complexidade das combinações que os levaram a seguir aquele caminho, o que é oposto ao trajeto linear de um estudante ‘tradicional’", complementa.

Dentro da exceção, há ainda quem "fuja mais à regra"

Já Teresa Martins, quando questionada sobre as motivações que levam uma pessoa reformada a querer aprofundar conhecimentos em qualquer que seja a área, realça que esse "desejo" não tem necessariamente de estar ligado à área profissional que estes adultos exerceram no mercado de trabalho ao longo da sua vida.

"Um estudante pode querer aprender mecânica - apesar de este não ser um bom exemplo, dado que é uma área que não é lecionada nas instituições de ensino superior - só com o objetivo de ser mais independente, para saber como agir em caso de um furo no pneu ou uma avaria no motor", exemplifica.

De acordo com Teresa Martins e Maria Gonçalves, estudar para obter uma reconversão profissional ou adquirir aprendizagens para aplicar profissionalmente "não será tanto a motivação ou o foco destes estudantes".

Há contudo exceções, e a história de Virgílio Garrido confirma-o.

Nascido em São Tomé e Príncipe em finais da década de 40, Virgílio mudou-se para Portugal em 1972, com o objetivo de estudar Belas Artes, na escola António Arroio, em Lisboa.

Virgílio Garrido a terminar a maquete de um centro comunitário no âmbito da unidade curricular 'Projeto IV'
Virgílio Garrido a terminar a maquete de um centro comunitário no âmbito da unidade curricular 'Projeto IV' Ana Luísa Valdeira

O ensino nunca lhe foi "vedado", no entanto, o seu percurso escolar foi “turbulento”, explica. Por questões de saúde teve de interromper os seus estudos, uma pausa que se prolongou por 20 anos, até retomar a sua formação para concluir o 12º ano. Anos mais, tarde, já reformado, decidiu que queria estudar arquitetura e concorreu ao ensino superior.

"Foi o meu professor de desenho no liceu que descobriu que eu tinha inclinação para a área e convidou-me para trabalhar na área de desenho arquitetónico", relembra Virgílio que atualmente já concluiu a licenciatura e o mestrado na área.

"Arquitetura é um curso com mestrado integrado, mas as pessoas podem escolher ficar só pela licenciatura. O problema é que só com licenciatura não se pode assinar os trabalhos e eu queria fazer uma coisa como deve de ser, por isso, segui os estudos. Atualmente estou a aplicar profissionalmente aquilo que aprendi."

Depois de concluir o estágio, o arquiteto acabou por garantir um lugar no atelier onde trabalha atualmente, estando inclusivamente responsável por um projeto de remodelação de um hostel.

Contrariamente às tendências delineadas pela maioria dos estudantes seniores que falaram ao Expresso, António Garrido foi estudar depois de estar reformado com intenções de ainda poder aplicar profissionalmente aquilo que tinha assimilado na sua formação académica.

Já Beatriz Cunha, que estuda Belas Artes na Universidade de Lisboa e tem 65 anos, decidiu abraçar "a experiência e o desafio para aferir se aquelas pessoas [professores e colegas] sabiam alguma coisa que ela não dominasse e que lhe estava a falhar."

"Quero perceber se o que eu sei é suficiente", comenta, referindo que os primeiros dias exigiram muita força de vontade, por considerar "ridículo ir para a escola ao lado de estudantes com 18 anos".

Beatriz Cunha com uma peça que estava a fazer para a unidade Curricular de Escultura, em 2023
Beatriz Cunha com uma peça que estava a fazer para a unidade Curricular de Escultura, em 2023 Expresso

O espírito académico não é, no entanto, algo novo para esta estudante, que frequentou o Ensino Superior quando era mais nova. Na altura, com 19 anos, frequentou História na Universidade Nova, em Lisboa, mas não concluiu o curso. Foi para o Algarve, onde abriu um atelier artístico por conta própria e foi disso que viveu durante alguns anos.

Em parte desafiada pela filha, mas também pela vontade interior que viveu com ela durante muito tempo, Beatriz Cunha voltou a dar uma oportunidade ao ensino. Perceber o que lhe pode acrescentar, insiste, ainda que esta razão não conste na lista da especialista Teresa Martins.

Embaraços inicias à parte, Beatriz considera que teve um percurso académico tranquilo sem grandes dificuldades. Antes sequer de voltar à universidade, teve contacto frequente com várias formações e workshops, que lhe garantiram alguma facilidade na passagem para a Universidade de Lisboa.

No que diz respeito ao ambiente social, esse não foi de todo um problema, porque apesar dos receios iniciais, a estudante lisboeta garante ter um boa relação com os mais jovens, o que se revela igualmente benéfico, tanto para ela, como para toda comunidade escolar.

O que dizem os especialistas?

“É importante que se desassocie a ideia de educação como formação de trabalho, porque aprendizagem é muito mais do que a formação profissional”, diz Teresa Martins. Mesmo que existam estudantes seniores que possam e queiram aplicar profissionalmente aquilo que aprendem, o mercado de trabalho não tem de ser o único foco o objetivo.

Os poucos dados sobre ensino superior e alunos mais velhos, nomeadamente acima dos 64 anos, são um obstáculo ao trabalho dos investigadores neste campo, que Teresa Martins avalia como “o parente pobre da educação”, a comunidade estudantil que mais carece de atenção por parte dos especialistas na área da pedagogia e da sociologia.

A investigadora coloca a tónica na educação como um direito, logo algo que não devia ter prazo de validade. A crítica não atinge só a mentalidade que associa a educação ao mercado de trabalho, estende-se à ideia - errada - de que estudar tem “data e hora” e que a partir de determinada altura é descabido pisar uma escola ou instituição de ensino formal. Não é.

*Artigo de Ana Raquel Pinto, editado por Mafalda Ganhão.