Primeiro, o plano está fechado. Veem-se vultos sucessivos sobre rodas a cruzar a imagem, posturas curvadas e capacetes postos. Mais estáticos, dois senhores: um quase de perfil, meio de costas, de boina na cabeça e casaco no tronco, agasalhado a aplaudir os ciclistas com óculos de sol; do outro lado da estrada, de frente, um homem grisalho de braços cruzados, em mangas de t-shirt, calções e chinelos. Ao fim de mais de quatro horas e vinte minutos a pedalar, o pelotão da Volta ao Algarve contorna a rotunda antes da reta da meta, em Lagos, na presença de um contraste de curiosos.

Saídos da parte giratória da estrada e na perspetiva televisiva, a realização da “Eurosport” muda o ângulo para um plano geral. A visão é agora cá do fundo, detrás da linha da meta, perspetiva clássica do desfecho de qualquer tirada de ciclismo para se assistir à chegada apressada dos ciclistas. Aí outro contraste, mais abissal, se nota: ao saírem da curva, a larga maioria dos competidores desaguam na esquerda da divisória a meio da estrada enquanto uns poucos pedalam pela direita, no lado para onde dezenas de pessoas estão debruçadas sobre as grades. Era suposto todos estarem a dar ao pedal na mesma via.

Deixou-se que Filippo Ganna, da equipa INEOS Grenadiers, vencesse a etapa ao sprint , tirasse as mãos do guiador e celebrasse a vitória com os braços no ar. Ao pódio subiram, depois, Carlos Miguel Salgueiro posou com a camisola verde, dos pontos, com um bouquet de flores e a companhia de duas mulheres, além do alemão Nicolas Tivani com o azul da licra da montanha pelos pontos recolhidos na tirada que só mais tarde, já concretizada a trapalhada monumental e vistas as consequências, se soube que contaria para nada.

⚠️ A primeira etapa da 51.ª Volta ao Algarve foi anulada.

Mais informações em breve.

Assim a organização fez saber, nas redes sociais, o anulamento da etapa inaugural da 51.ª edição da Volta ao Algarve. “O presidente do colégio de comissários cancelou a etapa. É mais do que legítimo, justo, é natural, e a forma mais justa de continuarmos com a Volta ao Algarve. A organização teve uma falha, um engano claro que induziu os ciclistas em erros (…) as imagens estão gravadas”, criticou Cândido Barbosa, presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo, quando falou à “Lusa” logo no rescaldo. “Temos lá uma bandeira amarela que não atuou a tempo. Os ciclistas vêm a alta velocidade, se calhar deviam estar dois. A própria PSP deveria fazer o seu papel, nota-se nas câmaras que não fez”, prosseguiu ao citar o que serve de fio para a descrição aqui narrada.

Desportistas de hábitos, seguidores com cega confiança das rotas demarcadas nas provas porque, afinal, compete à organização de uma Volta, de uma Clássica ou de uma corrida de um dia indicar por onde devem pedalar, uma larga fatia dos ciclistas não seguiu pela via certa para entrar na reta da meta. Muitos protestaram no final, vários saltaram as grades com as bicicletas em mãos, compondo um cenário inusitado, algo caótico. Para Cândido Barbosa, garante de que “vamos manchar a Volta ao Algarve com uma situação destas”.

Filippo Ganna, vencedor da etapa que afinal não contou, à conversa, no final, com Wout Van Aert.
Filippo Ganna, vencedor da etapa que afinal não contou, à conversa, no final, com Wout Van Aert. Tim de Waele

Vencedor de uma etapa que acabou por não contar, Filippo Ganna recusou-se a participar na cerimónia de entrega dos prémios. Tomou essa decisão depois de se defender: “Segui a via correta. […] Não é problema meu que outros ciclistas sigam o percurso errado. Eu ganhei.” A declaração surgiu antes de o especialista em ciclismo de pista - já foi seis vezes campeão do mundo da prova de perseguição - saber que a tirada seria anulada. Portanto, a suposta classificação e os pontos somados no percurso de 192,2 quilómetros entre Portimão e Lagos deixaram de interessar. Na quinta-feira, a Volta ao Algarve irá para a sua suposta 2.ª etapa com os ciclistas sem tempos, todos iguais, ninguém atrasado em relação a outrem, com o cronómetro a zeros.

Só no final dos 177,6 quilómetros de Lagoa e Alto da Fóia se terá uma classificação geral da prova. Se tudo correr bem.

A trapalhada da organização nesta etapa inaugural envolveu ciclistas afamados e vários consagrados. Para o lado dos certeiros foi Iúri Leitão, ouro olímpico na pista e recente campeão europeu de scratch. É desconhecido em que margem do caos ficou o dinamarquês Jonas Vingegaard, vencedor de dois Tours (2022 e 2023), o esloveno Primož Roglič, dono de quatro Vueltas e um Giro d’Itália, ou Geraint Thomas, inglês que é outro com uma Volta a França no currículo. Ou por onde foi João Almeida, o melhor ciclista português, aquando da separação das estradas. Esta Volta ao Algarve, como de costume por calhar onde está no calendário internacional, acolhe gente de relevo nas duas rodas, logo tende a atrair generosas atenções.

O diretor da prova, Sérgio Sousa, defendeu que “toda a informação técnica era clara no sentido de que os corredores deveriam seguir pela esquerda na última rotunda”. Indicou como “facto” que “alguns seguiram pela direita, numa faixa paralela à reta da meta”, quando as imagens na televisão sugerem que terá sido a maioria a fazê-lo. “Foi uma decisão errada do pelotão”, concluiu, mas dando a palavra a torcer - “é evidente que não teremos feito o suficiente para evitar este desfecho, que muito lamentamos”. No final, o contraste definitivo: ficou sem a vitória na etapa o homem mais rápido a seguir o caminho correto.