“Sem falta!”, “olhó cruzamento!”, “vai lá, ajuda!”

Lembram-se de quando, não assim há tanto tempo, um bicho microscópico enclausurou a humanidade entre quatro paredes? E assim que se pôde, aos poucos, sentir o ar lá fora, atividades várias foram retomadas, uma delas o futebol, a bola rolaria na pandemia, mas, durante bastante tempo, só em estádios escanzelados, despidos de gente e cheios de eco a preencher as bancadas? E de como se ouvia muito do que os treinadores gritavam durante os jogos? Pois bem, no Estádio Municipal de Aveiro, já dentro da hora de jantar do Halloween, a uma e outra vez desmascarada Taça da Liga, indecisa na vestimenta com a qual se adorna, fez o seu melhor para condizer com a noite.

Calhou que a entrada do FC Porto no chamado play-off da prova, frente ao Moreirense, não fosse no Dragão, alvo de uma interdição vinda de um castigo de há um ano - originalmente de outubro de 2023 para que fique bem explícita a sua antiguidade -, mas em casa emprestada na terra dos ovos moles, quiçá o disfarce escolhido pelo relvado do recinto para o Dia das Bruxas. Cedo o tapete ficou despedaçado, cheio de bocados soltos, um esburacado campo que piorou a cada minuto e rodeado por um vazio com ainda mais abertas.

Nas bancadas notava-se o colorido dos assentos, tão órfãos de gente, muito carentes de adeptos e da claque dos dragões, cuja ausência já fora confirmada desde que os grupos organizados de quem torce pelos oito clubes participantes neste mais um formato da Taça da Liga decidiram, em bloco, boicotar a prova, unidos no protesto contra “a atitude” de “exportar o produto” para o estrangeiro. Porque é conhecida e assumida a intenção da entidade que a organiza em levar a final four da competição lá para fora, quem sabe ao endinheirado Médio Oriente. Mas, tenha sido este FC Porto-Moreirense o jogo escolhido por algum magnata das arábias para espreitar o que vale esta taça, então a vontade da Liga está bem arranjada.

No silêncio da arena, à medida que se ouviram os berros de treinadores e adjuntos, os jogadores batalharam com o relvado, tentaram domar a bola no terreno acidentado e só depois se preocuparam com o adversário. Aos solavancos e repelões, houve trocas de passes dóceis até no meio-campo a partida se enredar em ressaltos, cortes, segundas bolas, muitas cargas de ombro e encostos até Leonardo Buta, atabalhoadamente, quase rematar para a própria baliza ao tentar cortar um cruzamento de Francisco Moura numa das raras jogadas gizadas com tino pelos dragões. O FC Porto punha-se a ganhar (34') sem um remate acertado no alvo. Pouco depois, Cláudio Ramos sujou o equipamento para afastar uma tentativa rasteira de Luís Asué.

JOSÉ COELHO

Fora a imunidade de Nico González às condições, indiferente ao relvado retalhado, a rasteirar passes tensos e precisos, até ousando uma vírgula à beira da área para se livrar de um adversário, a primeira parte foi isto, uma pobre amostra de qualidade no entroncamento entre um dos grandes do futebol português e uma das suas boas equipas esta época (7.º lugar no campeonato, a querer jogar e ter bola por ordem de César Peixoto).

A segunda parte, mais animada, arrancou logo com uma curvatura dada à bola pelo algo hesitante Namaso para Caio Secco brilhar, sem que o guarda-redes imitasse a proeza quando Stephen Eustáquio, servido por um esbaforido Galeno, recém-travado da sua correria, o sentou (61’) com classe para dilatar a vantagem. Com a bola sempre aos saltinhos na relva tresmalhada e o “pác” de cada passe a soar audivelmente no vazio do estádio, o FC Porto cresceu no seu esforço por domesticar o objeto redondo nas lombas enquanto domou um Moreirense que só aparentou forças para tentar deixar de ser inofensivo até ao segundo golo.

Acabariam a vencer os dragões, imperturbados e confortáveis nas circunstâncias, já com Fábio Vieira, Alan Varela e Rodrigo Mora em campo, um trio de diferenciados no trato dado à bola de que o relvado de Aveiro nada quis saber - nem as pessoas, porque só 3340 se deram ao trabalho de lá aparecer. E assim, como expectável, o FC Porto juntou-se a Sporting, Benfica e SC Braga na esperada final four da Taça da Liga, reformulada no seu formato para esta época fazer mirrar, ainda mais do que as anteriores, as esperanças das equipas ditas mais pequenas em fazerem uma gracinha, tal e qual a que este Moreirense provocou, em 2017, quando conquistou a prova.

Agora sem fase de grupos, só com os seis primeiros classificados da edição passada da I Liga e as duas equipas que subiram da II, sobraram os dragões, que vão defrontar o Sporting, e o Benfica e o SC Braga, ocupantes da outra meia-final. Tão imprevisível quanto empolgante pela diferença.