
O Papa Francisco, que sempre gostou - como se viu na Jornada Mundial da Juventude realizada em Lisboa - de estar entre as pessoas e transmitir-lhes uma espiritualidade serena, mostrando ser uma delas, não resistiu à doença e morreu em Roma, um dia depois do Domingo de Páscoa de 2025. Parte um dos líderes da Igreja mais amados, que nunca esqueceu as raízes, a paixão que tinha pelo futebol, nomeadamente pelo San Lorenzo, o seu clube do coração.
Alfio Basile, defesa central que jogou entre 1964 e 1975 pelo Racing Club e pelo Huracán, teve uma boa carreira como futebolista, tendo representado a Argentina em oito ocasiões. Dedicou-se a seguir ao treino e durante 27 anos passou por quase todos os clubes do seu país, San Lorenzo incluído, corria o ano de 1998. Foi nessa altura que Basile, uma das figuras mais coloridas e carismáticas do futebol alviceleste, não gostou que uma figura do clero que não conhecia fosse à cabina antes dos jogos, falar com os jogadores. «Podia desconcentrá-los», disse, e não foi de modas e convidou-o a sair da área reservada aos futebolistas.
'Coco' Basile recorda quando expulsão Jorge Bergoglio do balneário do San Lorenzo
O padre-adepto chamava-se Jorge Mario Bergoglio, era então arcebispo de Buenos Aires, e viria a ser nomeado sucessor de Pedro, com o nome de Francisco, a 13 de março de 2013. «Há duas coisas de que sinto falta», disse Francisco a propósito das limitações que acompanham a função papal: «Uma é não poder entrar num restaurante e comer uma pizza, a outra é não ir ver o meu San Lorenzo.»
DE 1946 A 2014
Não é habitual que o chefe máximo da Igreja Católica seja dado a coisas do futebol, mas Bergoglio nunca escondeu o seu amor pelo San Lorenzo de Almagro e gabava-se de saber de cor os nomes dos jogadores campeões da Argentina em 1946: Mierko Blazina; José Vanzini, Oscar Basso; Angel Zubieta, Salvador Grecco, Bartolomé Colombo; Mário Antonio Imbelloni (que fez história no futebol português, como treinador-jogador e como treinador, mantendo-se por cá durante décadas e deixando marca indelével em Braga e no Sporting), Armando Farro, René Pontoni, Rinaldo Martino e Oscar Silva. Ainda há pouco tempo, quando perguntado pelo San Lorenzo, Francisco queixava-se de não poder estar tão atento quanto desejaria, mas sempre que podia perguntava o resultado a um dos guardas suíços que zelam pela segurança papal.
Queira-se ou não, a verdade é que na época que se seguiu à investidura de Jorge Bergoglio como Papa, o San Lorenzo venceu a Taça Libertadores pela primeira (e única) vez, e não faltou quem clamasse por milagre papal naquele triunfo inesperado. Porém, nesse mesmo ano a Alemanha venceria a Argentina na final do Mundial do Brasil, prevalecendo o cardeal Ratzinger, que abdicara como Bento XVI no ano anterior. Aliás, o filme que fala dos «Dois Papas» termina com uma sequência ficcionada de ambos a assistirem, em Castelgandolfo, à final do Maracanã, resolvida por um golo de Gotze já à beira do fim do prolongamento.
MEMÓRIAS DO GASÓMETRO
Muitas foram as equipas recebidas, nas audiências de quarta-feira, por Francisco, no Vaticano, a mais significativa a do seu San Lorenzo que depois de ter conquistado a Taça dos Libertadores a foi mostrar a Sua Santidade (e ao sócio do clube 88.235, com as quotas em dia), em agosto de 2014. Francisco teve então oportunidade de afirmar, para que não restassem dúvidas: «Para mim, o San Lorenzo é a equipa de que toda a minha família era fanática: o meu pai jogava basquetebol no San Lorenzo, e quando éramos crianças íamos, até a minha mãe ia, ao nosso estádio, o Gasómetro. Lembro-me como se fosse hoje da temporada de 46, o San Lorenzo tinha uma equipa brilhante e fomos campeões....»
Em maio daquele ano, Oscar Lucchini, encarregado da capela na qual o então Arcebispo de Buenos Aires celebrava missa em ocasiões especiais, explicou que, após a eleição do Santo Padre, o San Lorenzo pediu autorização para colocar a fotografia do Papa na camisola, anuência dada uma vez sem exemplo. Foram feitas 30 camisolas, uma foi doada à capela, outra ao San Lorenzo, e as restantes 28 foram leiloadas para obras de caridade, a pedido do Papa, que preferia que o dinheiro que muitas equipas gastavam a visitá-lo fosse entregue a obras solidárias.
Mas a conquista da Libertadores era uma ocasião especialíssima e em agosto de 2014, uma comitiva composta por diretores e jogadores do San Lorenzo de Almagro viajou a Roma para apresentar ao Papa a Taça Libertadores conquistada pela equipa.
O gosto pelo futebol é apenas umas das facetas que tornaram o jesuíta Jorge Bergoglio (adepto de um clube fundado por um salesiano, Lorenzo Massa, em 1908, que assim quis tirar as crianças da rua, após um atropelamento ter vitimado um pequeno jogador numa pelada de rua) num Papa diferente, mais próximo das pessoas e com vontade de introduzir mudanças na Igrej,a que a pesada máquina do Vaticano tornou mais lentas.
No livro que fez em colaboração com o jornalista italiano Carlo Musso, o Papa Francisco não se coíbe de afirmar o desporto como uma faceta importante na vida das sociedades, e dá até o exemplo do desespero da comunidade italiana na Argentina, de que fazia parte, como filho de pais italianos, a mãe doméstica e o pai trabalhador dos caminhos-de-ferro, quando se soube que a equipa do Torino tinha perecido no desastre de Superga, quando regressava de Lisboa, a 4 de maio de 1949, depois de ter participado num jogo de homenagem ao capitão do Benfica, Francisco Ferreira.
Estes episódios permitem que se faça um retrato de uma personalidade multifacetada, capaz de ser um teólogo brilhante, sem perder a noção daquilo que faz parte do dia-a-adia da vida das pessoas comuns.
Morreu o Papa do povo. E o Mundo chora-o...