Jogas contra a entidade desportiva mais disfuncional a nível mundial, juntas-lhe umas doses de erros próprios e alheios, adicionas um toque de caos das noites europeus, acrescentas uma grande concentração de talento e, puff, fez-se isto. Criou-se este 3-3 entre FC Porto e Manchester United, este jogo que, mais do que uma partida de futebol, foi uma viagem de subidas e descidas emocionais, uma reviravolta constante.
O Manchester United é uma montanha-russa. Uma montanha-russa sem grande ordem, é o caos, não está em crise, é a crise. É estar a ganhar por 2-0 aos 20' e a perder por 3-2 aos 50'. É gastar fortunas em avançados e meter Jonny Evans e Harry Maguire aos 78'. E quem é que empatou? Maguire, claro, aos 91'.
O cabeceamento do mal-amado central concluiu um duelo intenso e frenético. Um embate em que o FC Porto não soube controlar Rashford, o United não soube controlar Samu e ninguém se soube controlar a si próprio. Um 3-3 que terá sabor amargo para os dragões, pois, além de surgir após um golo aos 91', acontece quando Bruno Fernandes já fora expulso — pela segunda partida seguida — e após várias oportunidades para o 4-2 terem sido desperdiçadas.
A grande exibição de Samu merecia uma vitória, mas a imagem do espanhol, triste e cabisbaixo após o empate final, é o espelho da frustração do FC Porto. Os azuis e brancos andaram na montanha-russa, estiveram na parte superior e na inferior da viagem, e terminaram como Samu: sentados, sem grande alegria, a olhar friamente para o horizonte.
O embate com aroma a 2004, com cheiro a Costinha, arrancou como acabou: frenético e louco. Dos cinco primeiros remates à baliza, saíram quatro golos, em 34 minutos iniciais em que houve tempo para rasgar a carta de despedimento de Ten Hag, ouvir assobios do Dragão á sua própria equipa, reescrever a carta de despedimento de Ten Hag e ouvir aplausos do Dragão à sua própria equipa. O United é tão caótico que, no fim de contas, a carta de despedimento que foi escrita, rasgada e reescrita ficará, na verdade, no mesmo local de sempre, uma crónica de um despedimento anunciado que acabará por suceder.
Se o Manchester United é um clube caótico, irregular, sem cumprir com as expetativas, talvez Marcus Rashford seja o jogador que melhor abraça esse espírito. Um talento enorme, de potencial brutal, mas inconstante, um atacante que, se tivesse sido um miúdo de Ferguson, poderia ser um muito titulado futebolista, mas ao nascer neste tempo é só mais um foco da ira desta era tenebrosa em Old Trafford.
No relvado do Dragão, Rash espalhou o seu cartaz de virtudes. Um velocista com técnica, um homem que se esconde na esquerda e parte para dentro, encarando no drible com intenção e vertigem. Foi um pesadelo para João Mário, que nem com a ajuda de Eustáquio conseguiu travar o inglês na ação do 1-0, logo aos 7'.
Rashford foi o grande destaque da madrugada do confronto. Levitando pelo campo, destruía um FC Porto incapaz de secar a fonte das transições do United, permitindo que Bruno Fernandes ou Eriksen lançassem a seta que se escondia na esquerda, bem junto da linha lateral. Quando Marcus embalava, parecia não haver nada a fazer, como não houve quando, aos 20', o inglês serviu Hojlund, que dobrou a vantagem visitante.
Interrompia-se a crise do United. Rasgavam-se os documentos da rescisão de Ten Hag. Eliminava-se o tweet institucional com “Thank you, Eric”. A instabilidade passava para o outro lado.
O exigente público azul e branco não reagiu bem à entrada em falso, assobiando a sua equipa. Mas a crise do United não é um momento, é uma condição permanente. Ganhe-se, empate-se ou perca-se, ela está lá. E bastou um lance para reanimar os locais, nesta primeira parte feita troca de bolas de estados de espírito.
Aos 27', uma recuperação em zona subida de Nico González, o faz-tudo deste FC Porto de Vítor Bruno, abriu espaço a um cruzamento de João Mário na zona de onde João Mário melhor cruza. Frágil no duelo com Rashford, o lateral destacou-se a colocar suaves cruzamentos para a área. Mazraoui esteve quase a marcar um auto-golo, evitado por Onana, mas Pepê marcou na recarga, reduzindo a desvantagem.
Bastou este lance para alterar a tendência emocional da noite. Os locais perceberam onde estava o ouro, carregando a área, onde Samu se ergue como um poço de perigo e força, incontrolável para uma defesa onde De Ligt exemplifica, talvez melhor do que ninguém, a triste ideia de trazer o Ajax de 2019 para o Manchester United de 2024. Uma contratação que surge da visão limitada do clube, incapaz de ter outra solução que não trazer ex-jogadores do atual treinador, numa reciclagem pouco criativa.
Aos 34', novo cruzamento de João Mário encontrou a potência, força e fome de Samu contra a lentidão de De Ligt. 2-2, quinto jogo seguido do espanhol a marcar. No festejo, o campeão olímpico pediu que o público trocasse os assobios pelos aplausos.
O 2-2 reanimou o Dragão, mas não escondeu onde estava o perigo. Na parte final do primeiro tempo, Rashford voltou a ter um par de grandes arrancadas pela esquerda, causando um terramoto sempre que arrancava. Depois do descanso, veio uma substituição que, para o FC Porto, foi quase metade de um golo. Rash ficou no balneário, sendo substituído por Garnacho.
Os ingleses eram, por aquela altura, um farrapo em campo. Moura correu o campo todo sem oposição, sendo apenas travado pela defesa de Onana. Como correu bem dessa vez, o United repetiu a experiência, dando muitos metros para que Pepê corresse. Só que, dessa vez, não foi Moura a finalizar.
Há qualquer coisa de sísmico ao ver Samu desmarcar-se para rematar uma bola. Um terramoto a acontecer, o chão cheio de fissuras. Para o contraste ser ainda maior, quem o acompanhava voltou a ser De Ligt, que tem tanta capacidade para travar a contundência de Samu como um ser humano tem para evitar que a lei da gravidade se faça sentir.
O 3-2 parecia deixar o United sem reação. Só Onana, travando Deniz Gül e Samu, evitou o 4-2. Nesta derrocada emocional, Bruno Fernandes foi expulso pelo segundo jogo seguido.
E eis que a montanha-russa dos red devils deu a volta. Foi ao fundo, era o momento de vir para cima. Que tal colocar Evans e Maguire, dois centrais com uma idade somada de 67 anos, para tentar o empate?
Dito e feito. Enquanto Vítor Bruno parecia um polícia sinaleiro cujas ordens ninguém respeitava, gesticulando para todos os lados no banco, o United encostava o FC Porto à sua baliza. Diogo Costa ainda travou um grande tiro de Garnacho, mas o balde de água fria para os azuis e brancos chegou aos 91', quando Maguire se impôs na área e fez o 3-3 final. Football bloody hell, diria Sir Alex Ferguson.