Quando, em 2009, um quê furibundo e vestido com fato de treino perante as câmaras, José Mourinho orquestrou um dos seus monólogos mais icónicos, disse que não gostava de “prostituição intelectual” e fez mira às equipas que seguiam no encalço do seu Inter de Milão na Série A. Transbordando do seu carisma bélico, queixava-se de estar a “uma grandíssima manipulação intelectual”, montando o seu caso com mira fixa em alguns treinadores adversários: “Nos últimos dias não se falou de uma Roma com grandíssimos jogadores, tantos que gostava de ter comigo, e que terminará a época com zero títulos; nem de um AC Milan, que vai acabar a época com zero títulos com jogadores, tradição e uma cultura vencedora e tudo o que um clube quer para ganhar.”

Em estado pleno de exultação mourinhesca, ainda num período da sua carreira em que era cativante até a estrebuchar, o português visou direta ou indiretamente os treinadores adversários, pobres coitados, enquanto criticava o trato do qual se sentia prejudicado pela imprensa. “Não se falou de uma Juve que ganhou tantos pontos, mas tantos pontos, com erros de arbitragem”, acrescentaria, às tantas acabando por sugerir às próximas equipas que iam defrontar o clube de Turim de que era “melhor não jogar”. Diminuindo esse rival a essa sugestão, menorizou por arrasto o respetivo treinador, um simpático senhor de seu nome Claudio Ranieri.

Foi há 15 anos que o italiano teve o seu último estável périplo numa equipa candidata a conquistas em Itália. Após terminar, como Mourinho previra, essa temporada no 2.º lugar do campeonato, Ranieri iria para a Roma, fechando o curso seguinte de novo como vice-campeão e a confirmar os “zero tituli” no clube que lhe apraz ao coração: nado e criado em Roma, confesso apaixonado pelo clube, o filho da capital que sempre cai bem no carinho dos adeptos nada conquistou, engordando a reputação que já lhe tinham colado de ser um tinkerman, homem farto em ideias e invenções demasiadas, mas incapaz de produzir resultados práticos.

Simpaticamente como lhe é característico, Claudio Ranieri esfregou essas etiquetas na cara dos seus detratores em 2016 com a incrível história que escreveu em Leicester, onde venceu a Premier League com uma equipa trabalhadora, sem estrelas, que frequentemente levava a jantar a uma pizzaria e presenteou, já campeã, com o Nessun Dorma de Puccini interpretado por Andrea Bocelli, que convidou pessoalmente a cantar. Mas, feito o conto de fadas, o futebol devolveria o italiano aos moldes a que já o vetara, o de ser um treinador fadado para trabalhos aflitos, homem a quem telefonar em caso de urgência ou se havia uma equipa em estado tal que só um pronto-socorro pragmático a podia salvar.

Luciano Rossi

Sempre sorridente na sua postura de bonacheirão, assim Ranieri salvou a Sampdoria da despromoção à Série B, em 2020, sujeitando-se a semelhantes arrelias de ter de fugir à descida de divisão nas últimas duas temporadas, no Cagliari, onde desabafou estar a sucumbir à idade, bradando por descanso. “Gratidão eterna para um grande homem” leu-se numa tarja mostrada por adeptos do clube da Sardenha, deixando em lágrimas o homem que garantira: “É o meu último trabalho enquanto treinador de clubes.” Claudio queria desfrutar dos netos, dedicar-se a viver uma vida que de bom grado prendeu ao futebol desde os 18 anos. “Sempre vi hotéis, aviões e estádios, quase nada mais”, disse, sem lamentos, quem se parecia despedir do futebol aos 72.

Até que apareceu a Roma em apuros.

O clube arrancou a época com a lenda Daniele de Rossi, despediu-o e deu a guia de marcha a quem lhe sucedeu, Ivan Juric. Caíra à 12.ª posição do campeonato e os Friedkin, donos da Roma, há anos a motivarem desgosto na bancada do Olimpico, recorreram a uma solução que falasse à alma dos adeptos onde não conseguem chegar. Tocando um soneto ao coração de Ranieri, convenceram-no a sair da reforma, a abdicar do descanso uma última vez. Pouco mais de um mês e meio volvido, o treinador devolveu-lhes a gentileza de vencer, este domingo, o jogo mais querido para os giallorossi, ao bater a Lazio por 2-0.

NurPhoto

Correspondeu à quinta vitória nos últimos sete jogos - o quarto sem sofrer golos -, confirmando o ressurgimento da equipa que estava moribunda à chegada do afável treinador, que levou a sua postura professoral, de braços atrás das costas e em pé diante do banco, à espera do arranque de cada partida, pela terceira vez à Roma. “Agora somos uma verdadeira equipa, todos sabem o que fazer. Temos de continuar assim”, resumiu Claudio Ranieri, feliz após o Derby della Capitale que o esculpiu na história da Roma: nunca um treinador vencera os primeiros quatro encontros com a Lazio após chegar ao cargo.

O septuagenário devolveu sorrisos às caras dos jogadores, renegando a polémicas e abdicando de convenções relativas à idade: restaurou protagonismo a Paulo Dybala, badalado nos últimos meses como na porta de saída do clube, e devolveu ao centro da defesa o trintão Mats Hummels e, pouco mais à frente, Leandro Paredes, um 6 para mandar através do passe ao lado de Manu Koné, que corre por ele e mais uns quantos. Decisões que Ranieri não quis empolar. “Pareceu-me lógico colocar campeões do mundo na equipa. Tentei dar confiança e auto-estima, a qualidade desta equipa é muito alta e tem de ser pulverizada com a vontade de ter a vitória”, explicou Ranieri, despojado de truques, como sempre não se levando demasiado a sério: “Não tenho segredos. Simplesmente tento manter os jogadores felizes e fazer com que deem tudo no campo.”

A recuperação na tabela, apenas a fez subir ao 10.º lugar do campeonato. Será incauto sugerir que possa replicar uma ascenção como que de 2009/10, quando acabou no 2.º posto ainda com o capitão Francesco Totti, lenda suprema do clube, mas afastado do Olímpico há alguns anos por desavenças com os donos da Roma. “Tenho de falar com ele e perceber o que quer e pode fazer”, revelou Ranieri, antes do dérbi, numa entrevista à “Gazzetta dello Sport”. Após a vitória contra a Lazio, o mesmo jornal titulou: “A Roma é de Ranieri.” O desportivo vizinho foi um pouco mais além. “Claudio Rei”, estampou o “Corriere della Sera” na sua primeira página.

É improvável que o treinador acabe a época com algo que contradiga a profecia de há tantos anos de Mourinho, mas, para já, ressuscitou a confiança da Roma e, pelo caminho, a sua própria e merecida aura de dar o cimento que perfaz equipas: nos giollorossi parece haver agora um plano definido, uma forma coesa de querer fazer as coisas, uma consistência defensiva antes em parte incerta. “Chamam-se sempre em situações problemáticas”, desabafou Claudio Ranieri depois de vencido o dérbi. “Por isso, ponho o capacete e começo a trabalhar”, concluiu. O seu ressurgimento da reforma durará até ao final da época e depois, “sabe Deus”. Fala-se que pode ficar como conselheiro técnico da Roma, é certo que estará para sempre no carinho dos adeptos.