Aferir quem habita no cume do planeta oval é ardiloso se não houver um Mundial em disputa. Quase há um ano, em Paris, os valorosos springboks sobreviveram a uma épica batalha com os all blacks, imperaram para conquistarem o segundo troféu Webb Ellis consecutivo, emulando o feito da Nova Zelândia e proclamando-se, sem necessidade de a condecoração vir de fora, como a mais dominadora seleção do râguebi atual. Dada a volta ao disco, o som saído da grafonola e ouvido no torneio das Quatro Nações com desfecho datado para este domingo não divergiu muito.
Ao longo do Rugby Championship, nome oficial da prova que junta o quarteto de países mais fortes do hemisfério sul, a África do Sul exibiu o seu poderio bastante à sua maneira, fiel aos seus trejeitos: o experimentalismo fora da caixa manteve-se (vimos Cheslin Kolbe, um rapidíssimo ponta, a atirar a bola num alinhamento, contra a Austrália, em vez do típico talonador rechonchudo a quem compete essa tarefa); continua a vislumbrar-se a desavença do médio de abertura, Manie Libbok, com os chutos aos postes e a ditadura física de Eben Etzebeth, o titã com bíceps com diâmetro não muito distante do de uma bola de râguebi, ainda a exercerem força gravitacional sobre os jogos.
Aparentemente imparáveis, os sul-africanos seguiam embalados com quatro vitórias seguidas, incluindo duas frente à Nova Zelândia, quando desembarcaram em Santiago del Estero, há uma semana, a darem descanso a alguns esteios da equipa e perderam, por um ponto, contra uma estrondosa Argentina, parente pobre do torneio na maioria dos anos contados desde 2012, quando se juntou à prova. A desgastante provação de terem de aprender durante um vergasto, de serem forçados a crescer já no posto, os sul-americanos garantiam, pela primeira vez na história, a hipótese de irem à última jornada com hipótese de conquistarem a coroa oval de quem vive abaixo da linha do Equador.
Este sábado, em Nestpruit, visados por um fervor que enche estádios pelo râguebi até em cidades mais humildes da nação cujo mais notório presidente usou a modalidade para curar as feridas de um povo, a Argentina seduzia o improvável, mesmo que possível. Tinha de vencer com ponto bónus ofensivo (marcar mais de três ensaios) e evitar que os springboks lograssem o único ponto que necessitavam para garantirem o título. Ou seja, se lhes ganhassem, que fosse por uma diferença maior do que sete. Suposições que cedo, bem cedo, rumaram a pertença do quase impossível.
Ao intervalo, os pumas já viam o sonho a 28 pontos, dominados por um ímpeto avassalador da África do Sul a desmontá-los com a sua tradicional procura constante do contacto físico para assentarem as suas bases preferidas, os rucks. Rápidos e estrondosos, obrigavam os argentinos a comprometerem homens nas disputas no chão (em 58 rucks, só perderam dois) e a desguarnecerem a defesa à largura, sofrendo quatro ensaios, um par vindo do defesa Aphelele Fassi, novo foco de entusiasmo nos springboks. Contra ele e todos, os sul-americanos sofriam por aguentar, focam-se mais em sobreviver do que jogar apesar do ensaio que Tomas Albornoz marcou numa das raríssimas entradas da equipa nos 50 metros adversários. A primeira só aconteceu aos 16 minutos.
Iguais à sua natureza com Rassie Erasmus, o excêntrico treinador que vive para esticar a corda da invenção - houve um alinhamento em que dois homens foram içados, a bola foi captada pelo primeiro para a passar, sem olhar, para o segundo que tinha nas suas costas -, as velhas caras do último Mundial sustiveram o ritmo da equipa.
Entre os homens recrutados para marrarem contra corpos com os primeiros passes, Pieter-Steph do Toit e Eben Etzebeth, os matulões de serviço, dessossaram as placagens argentinas e o último, uma das armaduras mais temíveis já vistas no râguebi, fê-lo no seu 128.º pela seleção, outro brilho dado ao dia por se tornar o springbok com mais internacionalizações pela África do Sul. No leme da partida, o nem sempre estável Manie Libbok deu uma lição a jogador ao pé e a alongar passes para Cheslin Kolbe massacrar com a sua velocidade. Dispensado de chutar aos postes (esses deveres estiveram com o formação Jaden Hendrikse), o 10 sul-africano superou orquestrou as jogadas com a suavidade de quem confia às cegas na sua aptidão.
Nenhum esgar de trauma se viu, sequer se recordou, de há uma semana, quando Libbok falhou a conversão de uma penalidade no último minuto e não salvou a África do Sul da derrota na Argentina. Obrigou a seleção a ter de selar a coroa em casa, num estádio onde os sul-americanos foram do mais descaracterizados que podiam ter sido. Santiago Carreras pouco se viu, o Mateo do mesmo apelido, mas não da mesma família, só se destacou pelo cartão amarelo que o castigou por carregar contra Fassi no ar, castigo aplicado a Pablo Matera na segunda parte por ir de ombro à frente contra a cabeça de um adversário ao limpar sem nexo um ruck. A cor desse cartão seria revista para vermelho.
Sem tino, os argentinos apunhalaram-se a eles próprios. Num segundo tempo mais tépido, incapazes de qualquer rasgo com a pouca bola que conseguiam conjurar, nem quando a tiveram a centímetros da linha de ensaio, aos 62’. Mais pontos apenas houve após Santiago Carreras dar outro cartão amarelo à Argentina, sinal cabal para os anfitriões carregarem sem hesitações no pedal: três ensaios apareceram nos últimos 10 minutos, a arena a ruir em barulho, as celebrações a anteciparem-se. “Isto é, agora, oficialmente um motim”, brincou um dos comentadores sul-africanos na transmissão televisiva.
O evento a transpirar festa, com canções sedutoras das gargantas do público nativo a serem tocadas em muitas paragens de jogo, foi selado com a vitória confirmadora do título para a África do Sul. Cinco anos depois, o caneco do Rugby Championship regressou aos braços de Siya Kolisi, o primeiro capitão negro do país, líder espiritual desta seleção que tudo ganha e, ao tomar a palavra no microfone, começou por congratular Filipe Contepomi, treinador argentino, pela equipa que montou. Carismático e gracioso, um capitão exemplar.
A única possível consolação para os argentinos, além de embrulharem uma edição do torneio em que venceram as três outras seleções, será terem retirado os springboks da liderança do ranking mundial devido ao resultado da semana anterior. Tudo bem, cantarão eles, o mundo oval é cada vez mais sul-africano.