O crescimento do futebol feminino em Portugal é evidente aos olhos de todos e o eterno dérbi, entre Benfica e Sporting, é, porventura, o mais fiel retrato de uma evidência que só os mais desatentos, desinteressados ou desprovidos dos elementares sentidos de decência e respeito conseguem ignorar. E Alvalade, tal como a Luz, é o palco certo para acolher a festa do futebol. Mesmo com todas as suas imperfeições.
Foram 6.490 pessoas que marcaram presença em Alvalade, número que espelha a evolução do jogo que também foi feito para elas. Há uns anos seria um número histórico, a 31 de setembro, parece um número demasiado vazio para o que o fenómeno se está a tornar. Basta recordar as 31.093 pessoas que estiveram no Estádio do Dragão este verão para ver a estreia da equipa de mulheres do FC Porto em ação ou as 27.221 que, em 2023, estiveram na Luz para, precisamente, um encontro entre o Benfica e o Sporting. Não foi um número tão arrebatador como estes, mas também não o precisava de ser.
Bastava estarem presentes em Alvalade 1.181 pessoas para ser um dia positivo. Significaria que o Estádio Aurélio Pereira, na academia do Sporting, em Alcochete, seria insuficiente para acolher todas as pessoas que queriam assistir ao jogo. Não bastando superar, o número de pessoas presentes em Alvalade mais do que quintuplicou a lotação da Academia. E foi muito mais reduzido do que poderia ter sido.
Os arrancares de época são sempre menos ávidos que os finais, com climas de tensão e suspense em virtude do reduzir do número de pontos a atrair ainda mais adeptos aos estádios. São poucas as equipas em Portugal capazes de resistir a esta tendência que ajuda a explicar esta tendência. Um jogo no final da época será sempre mais apetecível que no princípio.
O horário também não foi o mais conseguido. Sendo certo e sabido que as partidas da Champions League Feminina – que deveriam ser jogadas nos grandes palcos – obrigam a dias de descanso necessários para manter o nível das jogadoras, uma noite de segunda-feira não faz jus ao tamanho do jogo.
Os dérbis no futebol feminino são jogos de família e de amigos para juntar grupos nas bancadas onde o vermelho e o verde são adereços capazes de encaixar em qualquer assento, ignorando as “recomendações” de quem quer tornar mais pobre o futebol restringindo os adereços nas bancadas. E são, naturalmente, para ser jogados nas tardes de fins-de-semana ou dias festivos permitindo ao maior número de gente marcar presença nas bancadas. Uma segunda-feira à noite dá menos cor a um jogo que deveria ser tratado como um dos jogos do ano.
Cor que, não sendo justificação para a presença de adeptos na bancada, terá de merecer reflexão. É de saudar e apoiar a iniciativa do Sporting de alertar e sensibilizar para a importância do cancro da mama e que foi materializada no equipamento rosa que será usado pelos leões em outubro. Tendo em conta o contexto do jogo, e mesmo entendendo que era o palco principal para a promoção desta luta, a conjugação de cores nos equipamentos não foi a mais conseguida. Além da identidade de um Sporting x Benfica que vive também da rivalidade entre o verde e o vermelho, os rosas, vermelhos e pretos que desfilaram em campo tornaram mais complicada a identificação das jogadoras e, consequentemente, levou a maiores dificuldades na visualização do jogo. Numa altura em que, ainda é preciso convencer muitas pessoas a dar uma oportunidade no futebol feminino, todos os fatores contam.
Por fim, ainda falta muita promoção ao futebol feminino. Não dentro de campo, onde o nível vai subindo de ano a ano – considerar um fracasso não ter equipas portuguesas na Champions League Feminino é sinónimo desta subida que aumenta, também, a exigência – mas fora dele. Com canais alternativos de divulgação e com os clubes a falharem constantemente nas estratégias de promoção, continua a ser preciso desbravar terreno e superar barreiras em nome da valorização do futebol feminino. Porque, dentro de campo, as equipas continuam a corresponder.
As nuances de dois sistemas com bases iguais
A distância entre o Sporting e o Benfica reduziu, com a hegemonia das águias no futebol feminino nacional, a estar mais ameaçada que no arranque da última temporada. A perda de jogadoras como Jéssica Silva e, principalmente, Kika Nazareth, diminuiu a capacidade das águias criarem perigo através da fantasia e obrigou Filipa Patão a mudar exigências e a desenhar um novo plano para as águias que, naturalmente, demorará tempo a ser aprimorada. As ausências por lesão de Lúcia Alves e Christy Ucheibe aumentaram as fragilidades das águias que, ainda assim, continuam num patamar ligeiramente superior ao do Sporting.
As leoas reforçaram-se no mercado de verão, contratando a jogadora mais entusiasmante da Primeira Liga Feminina nas últimas temporadas – Telma Encarnação – e suprindo carências no plantel com a contratação de Georgia Eaton-Collins e a promoção de Andreia Bravo à equipa principal. Com um plantel mais coeso e consistente, o Sporting tem tudo para continuar a crescer. Mesmo que tenha voltado a ser inferior às águias, o projeto do Sporting está numa fase de crescimento.
Curiosamente, ambas as equipas apresentam-se num sistema tático base semelhante, embora com nuances diferentes. O 4-4-2 do Benfica, com bola, rapidamente se desmontava numa dinâmica assimétrica. À esquerda, Marit Lund projeta para permitir a Andreia Norton jogar por dentro, fazendo o movimento a partir do corredor esquerdo que só ocupa no papel. À direita, Catarina Amado fica mais baixa, permitindo ao Benfica sair a três, e dando o corredor a Chandra Davidson, jogadora com maior capacidade para atacar espaços de trás para a frente e de jogar por fora. A chave da dinâmica de Filipa Patão chama-se Nicole Raysla, aproximando-se da bola e jogando pelos três corredores com muita liberdade.
O 4-4-2 de base do Sporting contempla extremos mais interiores com Cláudia Neto e Jacynta Gala a atuarem por dentro, permitindo às laterais projetarem-se e ocuparem o corredor. São jogadoras, principalmente a internacional portuguesa, com qualidade técnica no passe e na receção e capazes de receber entrelinhas. O Sporting costuma sair a três com uma das médias – geralmente Andreia Bravo, revelação desta temporada – baixa para o meio das centrais, ficando o Sporting a atacar numa espécie de 3-5-2 com os posicionamentos bem definidos e muitas jogadoras nas costas da segunda linha de pressão do Benfica.
A chave para a vitória das águias esteve em dois pontos, essencialmente. O primeiro, e mais natural, a eficácia. Não foi o ponto essencial, mas ambas as equipas tiveram duas situações clamorosas para marcar golo (esquecendo o golo anulado a Telma Encarnação, num movimento típico da avançada). O Benfica converteu ambas, o Sporting esbarrou no poste e em Laís Araújo – que se redimiu dos erros a meio da semana e que precisa de elevar a regularidade para deixar o papel de patinho feio – na primeira e numa gigante Lena Pauels na segunda. Telma Encarnação e Ana Capeta foram mais controladas pelo Benfica, mas conseguiram desprender-se e criaram perigo. Faltou o golo e o timing dos golos permitiu ao Benfica ganhar conforto no jogo.
A segunda foi a capacidade de atacar a profundidade com critério. Com as duas equipas a defender alto, o campo jogável reduziu consideravelmente, obrigando a tomadas de decisão mais rápidas, reduzindo a margem de erro nas ações com bola e permitindo às duas equipas explorarem a profundidade. O Benfica, pelo papel de três jogadoras em particular, conseguiu ser mais criterioso nesta exploração pelo lado direito, como Filipa Patão admitiu em conferência de imprensa.
Com Cristina Martín-Prieto a funcionar como referência central a fixar as defesas centrais do Sporting, a abrangência de movimentos de Nycole Raysla aumentou, procurando as costas das médias para receber e aumentar as indecisões das defesas do Sporting, tendo de decidir entre largar a linha defensiva e abrir um espaço para a avançada espanhola ou mantendo posição e permitindo à brasileira maior raio de ação. Com Chandra Davidson constantemente a projetar-se no corredor e recebendo a bola em movimento, o Benfica conseguiu desequilibrar e criar muito perigo e criar as condições ideias para atacar as costas da linha defensiva.
Mesmo na sequência de um lançamento de linha lateral, o primeiro golo é evidência deste facto, criando o Benfica condições para Martín-Prieto receber na linha defensiva. O resto foi trabalho da espanhola, com muita capacidade para adornar o lance antes de visar a baliza. Não é só pelos golos que a ex-Sevilha é uma mais-valia. No segundo golo, Nycole Raysla mostrou os argumentos na condução e na definição.
A época será longa e, com jogadoras-chave ainda em adaptação – ao clube ou à nova posição – este dérbi é apenas um ponto de partida. Com o contexto interno como único foco e num ano em que o título vale muito mais que isso – a presença garantida na Champions League está à espreita – ainda há muito para jogar na Primeira Liga Feminina. E que, tal como Alvalade, se vá jogando cada vez mais nos maiores palcos de Portugal.
BnR na Conferência de Imprensa
Bola na Rede: Viu-se muitas vezes o Benfica a atacar pelo lado direito e concentrar várias jogadores. Pergunto se parte da estratégia foi ter a superioridade numérica pelo corredor direito e se a maior aposta por este flanco em vez do esquerdo tem alguma outra explicação tática?
Filipa Patão: Nós sabíamos que à partida, com a ausência da central que costuma jogar naquela posição [Andrea Norheim], possivelmente iam fazer como fizeram contra o Real Madrid que foi colocar a Fátima Pinto como central. É uma jogadora que pode fazer a posição, mas não é uma central de raiz. Sabíamos também que em termos de velocidade a Ana Borges, tem a qualidade que tem, e não está aqui em causa a qualidade da Alicia Correia que também é uma jogadora com bastante qualidade. Mas sabemos que em termos de velocidade, a Borges é uma jogadora mais complicada de passar no 1×1. Então queríamos provocar mais desconforto pelo corredor direito onde sabíamos que ainda por cima não havia uma central de raiz. Muitas das vezes a Fátima para tentar ajudar a Alícia acabava por se aproximar muito, deixando um espaço muito grande entre as duas centrais ou entre a central e a lateral. Por isso sabíamos que o envolvimento das jogadoras desse lado era benéfico. Mas também depois com a variação do centro de jogo, se conseguíssemos ser competentes, obrigado o Sporting a bascular, conseguíamos variar e criar perigo e deixar a Borges numa situação complicada com menos ajuda da Cláudia Neto que acabava por saltar na Marit Lund e impedir que a Borges tivesse de saltar. Aí, com uma variação, seria muito mais difícil a Cláudia Neto fechar esse espaço. Nem sempre fomos competentes em fazê-lo, principalmente a questão da variação do centro de jogo. Falhámos aí por um bocadinho de desconforto com bola, que é natural nesta fase, depois do que a equipa passou. Ainda assim, sabemos os processos que temos e aquilo que temos de fazer. É uma questão de ganhar confiança e de ganhar o conforto com bola que sempre tivemos e que queremos voltar a ter para conseguirmos ser um Benfica a conseguir ferir as linhas adversárias. É uma adaptação das jogadoras que agora encontram outras referências. No ano passado eram umas, agora são outras e é uma adaptação que estão a fazer e a ganhar um novo papel. É o caso da Nycole Raysla e da Andreia Norton que agora têm um papel um pouco diferente do que tinham. Estão a adaptar-se e tenho a certeza que vamos ver do meio da época para a frente jogadoras muito diferentes do que temos visto.
Bola na Rede: Com as duas equipas a defender muito alto no terreno, o campo jogável encurtou. Pergunto-lhe quais as consequências deste fator no ponto de vista ofensivo, a nível da construção do Sporting e do ponto de vista defensivo, ao nível do controlo da profundidade aliado a várias situações de igualdade ou inferioridade numérica nos corredores laterais?
Mariana Cabral: Ambas as equipas estavam a tentar fechar o espaço entrelinhas. Nós temos jogadoras com muita qualidade em frente ao setor defensivo adversário e conseguimos, por vezes, atacar o espaço nas costas com as ruturas das avançadas, como no golo anulado à Telma Encarnação. Acho que podíamos ter entrado por aí mais vezes, se calhar não tanto por dentro mas por fora. À volta da pressão e não por fora da pressão. Mas pronto, a clarividência acaba por ficar um pouco afetada quando sofremos o segundo golo no início da segunda parte. Tudo o que falámos ao intervalo acabou por ser um bocado… Não vou dizer inútil, mas acabou por ficar invalidado. Sofremos o segundo golo e acabou por ser mais complicado por isso. No primeiro golo não podemos permitir que entrem dentro do nosso bloco daquela forma.