Tudo o que começa tem um fim. Atletas vêm, atletas vão, mas a última vez chega a todos. Paris será o local onde as pedaladas paralímpicas de Telmo Pinão irão terminar. Hoje, aos 44 anos, o paraciclista abandona estes palcos de consciência limpa. “Já antes de vir para cá, as minhas decisões estavam mais que tomadas. Uma decisão que já foi tomada há algum tempo, inclusivamente, quase imediatamente após Tóquio. Neste momento, tenho a certeza que estes são os meus últimos Jogos. Eu queria sair por cima e foi o que eu fiz. Estes diplomas deram-me isso”, ressalta o atleta natural de Coimbra.


Mas até chegar a Paris, Telmo atravessou continentes. O atleta figurou nas duas últimas edições do megaevento: Rio 2016 e Tóquio 2021. Uma paixão que aflorou através do amor de Telmo pelo desporto motorizado. “Desde sempre que fui louco por motas, em especial todo o terreno. Eu próprio tinha a minha, uma moto-quatro”, recorda.

Há quem lhe chame ironia do destino, há quem lhe chame azar. Aos 22 anos, um acidente de mota resultou na amputação da perna esquerda do futuro paraciclista. “A minha vida deu uma volta. Uma pessoa com 22 anos, com toda a dinâmica que tinha, toda a adrenalina que tinha, de repente, a vida tirou-me o tapete de baixo dos pés. Nesse momento, as questões começam a surgir.” As questões, as inseguranças, os receios. Existe uma fronteira que separa os dois universos vividos por Telmo, cada um deles com 22 anos. Há época, a adaptação não era tarefa fácil. “Era um corpo que numa fase inicial eu rejeitei. Um corpo que, quando me olhava ao espelho, via um monstro. E, de repente, tens que te adaptar a uma nova realidade”, explica.


ANTÓNIO PEDRO SANTOS

A palavra de ordem era “adaptação”. Contudo, não somente a si próprio. Ter só uma perna trouxe a Telmo olhares aos quais não estava habituado. Andar na rua e realizar atividades de lazer não voltaria a ser o mesmo. “Infelizmente, a sociedade é muito cruel. Desde entrar num elevador e perguntarem-me: olhe, então o que é que foi isso? Olharem para mim na rua ou nas esplanadas por eu andar de calções e a minha prótese ficar visível. Olharem para mim nas piscinas por eu tirar a prótese e entrar dentro de água. Eu sei que está sempre tudo a olhar para mim”, relata.

Foi nesse momento em que entrou o desporto como salvação. Começou a praticar artes marciais, como o karaté, mas não existia a vertente paralímpica. O ciclismo surgiu sob a forma de um substituto do amor pelas motas. Uma aposta certeira. “O desporto entrou na minha vida para me reinventar e, no fundo, para me admitir. Tinha duas pernas, nasci com elas, vivi 22 anos com elas e, de repente, uma deixa de existir”, expõe o atleta, atualmente a concluir uma licenciatura em Ciências do Desporto. “Esta amputação, este infortúnio mudou-me. Não que eu antes fosse uma persona non grata. Não foi um processo em que te cortam uma perna e instantaneamente mudaste a tua personalidade e filosofia de vida. Foi um processo semelhante a ter um filho. Nós vamos crescendo e esse amor pelos filhos vai crescendo, assim como este amor. À medida que os anos foram passando, eu fui mudando e conhecendo-me melhor e foi no desporto que me encontrei.”


Antonio BORGA

Foi como ter um filho. E, de facto, não tardou assim tanto para que Telmo passasse das metáforas à realidade. A dada altura, as perguntas e intromissões já faziam parte do seu quotidiano. Começou a lidar com tudo isso, como não poderia deixar de ser, na desportiva. “Amigo, isso da perna o que foi? Olhe, foi uma trombose”, narra Telmo. “Eu até nem me importo quando me vêm perguntar, mas ao menos perguntem-me o nome primeiro. Não somos nenhuns bichos que andam para ali.”

No entanto, tantas ironias e brincadeiras não prepararam o então pai para o que se seguiu. “Quando a minha filha nasceu eu já só tinha uma perna. E é engraçado, porque eu faço imensas palestras, recebo tantas perguntas, principalmente das crianças, mas quando foi a minha própria filha, eu não estava preparado”, admite. Tinha apenas cinco anos nessa altura. Habituado a responder à famigerada pergunta, Telmo foi apanhado de surpresa quando se viu sob o olhar de curiosidade da filha. “Papá, tenho uma coisa para te perguntar. O que aconteceu à tua perna? Eu congelei. Fiquei um pouco envergonhado. Mas disse a verdade. Filha, o papá ia a andar de mota e teve um acidente. O pé do papá ficou entalado e os senhores doutores disseram que tínhamos de trocar a perna, porque o papá já não aguentava com as dores”, recita. Mas, à semelhança da inocência pura que descreve uma criança, a resposta que Telmo recebeu não poderia ser mais condizente. “Ela só me disse: ah, ok, tudo bem! Agora, quando vão lá amigas dela a casa, já é ela quem explica.”


Hoje, Telmo Pinão tem duas filhas, a mais velha e curiosa tem sete anos, a mais nova apenas dois. E, durante a preparação para Paris, também as pequenas desempenharam um papel de relevo. “As minhas filhas sentiram muito a falta que o pai lhes fez. Ainda agora foram horas, semanas e meses fora de casa. Nos últimos três meses quase nunca parei em casa, fosse em provas, fosse em regime de estágio. Tenho a plena consciência de que elas sentiram essa falta, mas também que estavam desejosas para que o pai representasse Portugal”, declara.

Antonio BORGA

A base dos atletas é os sacrifícios, sobretudo estes que alcançam o patamar que Telmo atingiu. Abdicar de momentos em família, de acompanhar de um modo mais próximo o crescimento das filhas, de “comer umas boas carnes e beber umas cervejas”, tudo isso contribuiu para a decisão final do paraciclista. Mas não pretende, simplesmente, abandonar. “Estarei cá para tentar dar continuidade a este projeto, dar continuidade a algo que é muito importante que é o recrutamento de mais pessoas para o desporto adaptado. Nós precisamos de caras novas e caras jovens, que sei que existem em Portugal, mas é preciso dar a conhecer que existe desporto adaptado, que existe uma vasta oferta em Portugal”, aponta. “O desporto não está a chegar às pessoas, nem as pessoas estão a chegar ao desporto. Isto deve-se muito também aos pais. Se os pais não insistirem, ainda mais tratando-se de pessoas com deficiência, torna-se complicado. Não pode haver o receio de aparecer, de estar na sociedade”, conclui.

Na despedida das paralimpíadas, Telmo Pinão arrecadou um diploma. Sai “por cima”, como o próprio gosta de dizer. Mas as marcas, seja as que tem tatuadas pelo corpo, seja aquelas que não se veem, essas ficarão para sempre. “São estas marcas que me fizeram ser quem sou hoje. Estas marcas vão fazer parte de mim para o resto da minha vida. Ser atleta olímpico ou paralímpico e ter participado em três jogos, tudo isso vai ficar em mim para o resto da minha vida.”