A vida é feita de coincidências e semelhanças. Há histórias no futebol que transcendem o simples rolar da bola e transformam-se em ciclos que parecem escritos pelo destino - que o diga este reencontro entre João Pereira e Gil Vicente, no próximo domingo.
Em 2005, Paulo Alves pendurava as chuteiras no Gil Vicente, encerrando uma carreira que o levou a vários cantos de Portugal, mas que encontrou em Barcelos o seu ponto final – mas também um (re)começo. Mal se despediu dos relvados, vestiu outra pele: a diretor desportivo e, quase de seguida, treinador, abraçando a responsabilidade de liderar um clube que fora o seu lar nos últimos anos como jogador.
Entre os jovens que orientou nesse início de carreira estava João Pereira, um lateral cheio de garra e irreverência, que viria a conquistar palcos maiores. Agora, esse mesmo lateral trilha um caminho inicial semelhante ao do seu antigo técnico.
Em conversa com o zerozero, Paulo Alves revisitou memórias passadas e traçou paralelos entre a sua própria jornada e a do agora treinador da equipa principal do Sporting. Afinal, o futebol tem uma maneira curiosa de unir histórias e de fazer com que caminhos se voltem a cruzar.
«Queria ganhar tudo e mais alguma coisa»
Após terminar a carreira como jogador, o técnico de 55 anos assumiu a direção desportiva do Gil Vicente. Num momento em que as coisas não estavam a correr bem, teve de tomar as rédeas da equipa principal dos galos e, ainda hoje, recorda João Pereira.
«O João era muito jovem, tinha vindo do Benfica. Dava a impressão que queria à força toda provar que era um jogador de outro nível e para outros voos. Era um jogador muito, muito intenso, com muita entrega ao trabalho. Era muito disciplinado. Queria ganhar tudo e mais alguma coisa. Num simples exercício, fosse qual fosse, ele queria ganhar e isso levava a alguns conflitos que eram imediatamente sanados. Percebi que o João era um jogador para outros voos e que tinha uma vontade muito grande de se impor como um jogador para os grandes», começou por referir, em conversa com o nosso portal.
Mas impôs-se a questão: numa transição tão abrupta como aquela que Paulo Alves teve de enfrentar, como se lida com este tipo de jogadores, mas também com o balneário?
«A maioria daquele balneário era composto por jogadores que tinham sido meus colegas. Não foi fácil para eles aceitar um ex-colega. E houve mais dificuldades nesse sentido. O João não fazia parte desse lote. Tinha chegado há pouco tempo. Com o tempo, fomos ganhando o balneário e construindo um grupo», relembrou.
«A equipa foi percebendo que era fácil trabalhar comigo. Sempre o foi, desde que as pessoas sejam disciplinadas, gostem de trabalhar e de ganhar. O João demonstrava exatamente isso. Não era um jogador fácil. Tive de o acalmar muitas vezes. Tive de discipliná-lo no bom sentido, mas era um jogador que dava tudo, que deixava tudo em campo e, quando assim é, é relativamente simples lidar com estes jogadores. Ele sabia ouvir e gostava de ouvir.»
A situação atual de João Pereira não se mostra muito distinta. Terminou a carreira com a camisola do Sporting em 2020/21 e, três anos depois de treinar os escalões de formação dos leões, foi obrigado a assumir a equipa principal. Paulo Alves consegue rever-se na pele do jovem treinador.
«Eu era diretor desportivo e, na altura, estava no Brasil a fazer prospeção. Quando regressei, o Presidente colocou-me a situação de liderar a equipa até ao final da época. As coisas estavam difíceis. Além da surpresa, fiquei assustado. Por isso, também compreendo um pouco este tipo de reações que o João tem tido.»
Resistência por parte de alguns jogadores? Alguma desconfiança? Paulo garante que são «reações humanas e naturais». «Eventualmente, também terá acontecido isso no Sporting. Os jogadores pensaram: qual será o tipo de líder? O que é que vai acontecer? Como é que vai ser? Tivemos um líder até determinado momento e agora? Como é?»
E João Pereira? Como era o menino de 20 anos naquele balneário? Paulo Alves lembra a prontidão e a personalidade intensa de um lateral que, mesmo na Segunda Liga, queria dar tudo por tudo.
«Lembro-me de um João sempre empenhado e, sobretudo, a ser o primeiro - mesmo no túnel, antes dos jogos - a incentivar os colegas. "Vamos ganhar e vamos com tudo". Era muito irrequieto. Não parava. Nos jogos, era de uma entrega extraordinária.»
«Conseguimos a manutenção em termos desportivos, mas, infelizmente, o clube teve um problema administrativo - Caso Mateus - e, no ano seguinte, fomos para a Segunda Liga. A maioria dos jogadores – os que tinham alguma história de Primeira Liga ou os jogadores mais caros - saíram, mas o João ficou. Foi dos primeiros a mostrar intenção de ficar e não foi por ter ido para a Segunda Liga que deixou de ter empenho. Foi dos jogadores que mais ajudou nesse ano - o que lhe valeu, na época seguinte, a ida para o SC Braga. O João tem uma personalidade e um coração fantástico.»
«Era previsível que houvesse alguma décalage»
A mudança é abrupta e a pressão advém de toda a parte. Paulo Alves sentiu isso na pele. Com João Pereira não é diferente. Desde a saída de Ruben Amorim, o Sporting somou, em sete encontros, três vitórias, mas quatro derrotas consecutivas pelo caminho.
«Neste processo inicial do João, era previsível que houvesse alguma décalage em termos exibicionais e de resultados, em termos de ajuste de personalidades de uns e de outros. Acredito que, também, não era suposto haver quatro derrotas seguidas. As coisas podiam ter-se evitado de alguma forma, nomeadamente alguns destes desfechos», afirmou Paulo.
«Os resultados não ajudam a que o João vá percebendo como se há de moldar, de reagir. Como é que há de passar essa tranquilidade para os jogadores e para que eles possam desenvolver o melhor do seu potencial. A vitória contra o Boavista foi importante e, se o João der seguimento, vai estar mais em controlo da situação e os jogadores também se vão ajustar e adaptar. Oxalá que, para o João, as coisas se acalmem e que os jogadores possam voltar àquilo que eram. O Sporting era uma equipa muito intensa, com uma entrega fantástica e uma qualidade extraordinária. Espero que o João possa extrair deles esse lado.»
«Tudo isto é semelhante ao alto-mar»
Entre as quatro linhas e o banco de suplentes, os comportamentos são diferentes, nem que seja apenas um pouco. No entanto, com o passar dos anos, Paulo Alves ainda vê muito do João Pereira jogador no atual treinador.
«Apesar das limitações da certificação e do João não se poder levantar, a linguagem corporal dele é igual. Sente-se que está quase a querer entrar em campo e ser ele resolver. Vai perceber que, com o tempo, uma coisa é ser jogador e outra é ser treinador. Vai ter de se ajustar e perceber qual o tipo de reações que pode e não pode ter, porque ele é, de facto, uma pessoa muito intensa», refletiu.
Os resultados e a pressão para os obter não são grandes amigos de alguém que tem uma tarefa hercúlea em mãos como a de João Pereira. Nas palavras de Paulo Alves, a transparência da tranquilidade é das coisas mais importantes para um treinador e deixou um conselho ao timoneiro dos leões.
«Os jogadores olham para o treinador e, facilmente, percebem se está tranquilo, se está a tudo a condizer com as estratégias. Eventualmente, as coisas vão normalizar e acalmar», começou por dissertar.
«Tudo isto é semelhante ao alto-mar. As pessoas estão num navio e o mar está revolto. Se as pessoas olharem para o capitão e o virem nervoso, a dar ordens para um lado e para o outro, vão ficar assustadas. Se, pelo contrário, olharem para um comandante tranquilo, seguro do que está a fazer, de cabeça levantada, tranquilizam-se. Acho que passa por aí: pela segurança, pela personalidade boa que o João tem, mas tem de a demonstrar. Os jogadores têm de olhar para ele e sentir essa segurança.»
Em alto-mar, é preciso abrandar, pensar e agir. No Sporting de João Pereira, a lógica não é distinta. Será que a casa que outrora foi sua em Barcelos servirá de palco para boas memórias?