Na próxima terça-feira é lançada, a nível mundial, a autobiografia do Papa Francisco, intitulada Esperança, primeira dum papa em funções. Escrita nos últimos seis anos, com Carlo Musso, inicialmente a ideia era que fosse publicada só depois da sua morte, mas Francisco alterou os planos para aproveitar a celebração do Jubileu.
No livro, o Papa Francisco fala das suas raízes italianas, da emigração dos familiares para a América do Sul, da infância e da adolescência, da escolha da vocação, da vida adulta e do seu Pontificado. E o desporto, tão impactante na meninice de Jorge Mario Bergoglio, nascido em Buenos Aires em 1936, está muito presente.
Francisco lembra, por exemplo, a relação dos emigrantes italianos em Buenos Aires com o Grande Torino, equipa que dominava o futebol italiano até à tragédia de Superga, quando o avião que trazia a equipa de Portugal, após jogo com o Benfica, embateu com a basílica no topo da colina com aquele nome, em Turim, vitimando todas as 31 pessoas a bordo.
«A música popular seria sempre uma ligação entre dois mundos, mesmo nos anos vindouros, como uma corda tensa entre uma parte e a outra do oceano; mais adiante, chegariam Parole parole, de Mina, ou Zingara, de Iva Zanicchi, pela qual nos deixávamos levar. Do mesmo modo, mas pelo contrário, foi o luto, e não só na comunidade piemontesa de Buenos Aires, quando em maio de 1949 chegou a notícia da tragédia de Superga, e se soube que o avião que transportava a equipa do Torino, uma das mais fortes do mundo, que constituía a coluna vertebral da seleção nacional de futebol italiana, se despenhou contra o paredão do terrapleno da basílica, e morreram todos. Muitos anos depois, fui pessoalmente visitar aquela basílica, permanecendo comovido sob a lápide com os nomes das 31 vítimas. A corda não se quebrou, aquela dor popular reforçou as ligações», conta o papa.
Mas há também um capítulo inteiramente dedicado ao desporto, onde é descrita a meninice como adepto do San Lorenzo, o pouco jeito para jogar e a relação familiar com Omar Sívori, que foi o Pibe de Oro antes de Maradona o ser. É um excerto desse capítulo que A BOLA, graças à gentileza da Penguin Random House Grupo Editorial, aqui transcreve:
Jogava no globo terrestre
Sempre gostei de jogar à bola e não me importava de não ser grande coisa. Em Buenos Aires, chamavam pata dura àqueles que eram como eu. O que significa ter dois pés esquerdos. Mas jogava. Muitas vezes, era o guarda‑redes; esse papel também é bom: ensina a olhar a realidade na cara, a enfrentar os problemas; talvez não saibas donde partiu aquela bola, mas, de qualquer maneira, deves tentar agarrá‑la. Tal como acontece na vida.
[…]
«Jogava no globo terrestre«, diz a Sapiência no Livro dos Provérbios (Pr 8,31). Antes de mais nada. Antes de ter sido criada qualquer outra coisa.
Milhões de meninos e meninas de todo o mundo imaginam que jogavam à bola.
Um grande escritor latino‑americano, Eduardo Galeano, conta que um dia um jornalista perguntou à teóloga protestante Dorothee Solle: «Como explicaria a uma criança o que é a felicidade?» «Não lhe explicaria», respondeu a teóloga. «Dar‑lhe‑ia uma bola para que jogasse.»
Não há melhor maneira de explicar a felicidade que não seja tornar os outros felizes.
E jogar torna as pessoas felizes, pois pode‑se exprimir a liberdade, competir de maneira divertida, simplesmente, viver o tempo do amadorismo... Pois pode‑se perseguir um sonho sem ter de ser forçosamente campeão. Torna‑nos felizes mesmo que sejamos um pé duro.
Ainda que, segundo contava a minha mãe Regina, que era uma Sívori, nas nossas veias corresse ainda um pouco de sangue dos campeões: também o avô de Omar Sívori, que se tornaria um dos maiores atacantes da história do futebol, era originário da mesma zona de Lavagna, no interior da Ligúria, da qual todos provinham. Omar, que foi o primeiro a ser alcunhado El pibe de oro, quando Maradona ainda estava no colo de Deus, nascera na Argentina um ano antes de mim, e depois de ter vencido o campeonato com o River Plate, transferiu‑se para Itália, para a Juventus e depois para o Nápoles.
Quando em família falávamos dos Sívoris e da Argentina, e algumas vezes se mencionava também o futebolista, a mamã contava que, de facto, éramos todos parentes, embora em alguns casos distantes, e que ao longo dos anos nos tínhamos dispersado por diversos pontos do país. Omar Sívori vestiria as camisolas das duas nações e, no início dos anos sessenta, seria também premiado com a Bola de Ouro. Éramos quase coetâneos e um pouco aparentados, mas ele não foi dotado de dois pés esquerdos...
Sívori era um campeão, mas não podia ser ele o meu ídolo de criança; ainda éramos ambos pequenos e eu era adepto do San Lorenzo! No bairro de Boedo, não muito distante da casa dos avós maternos, o azulgrana de San Lorenzo de Almagro eram as cores mais familiares, coloriam ruas, flutuavam nas varandas, emolduravam janelas. Naquela sociedade polidesportiva, fundada no início do século por um sacerdote salesiano, também ele de origem piemontesa, o padre Lorenzo Massa, com as cores vermelho e azul do véu de María Auxiliadora, o meu pai Mario, que era um homenzarrão, jogava basquetebol.
[…]
De entre todos os desportos, era o futebol que dominava o clube. E eu, se como futebolista ou jogador de básquete deixava a desejar, como adepto era indiscutível. Com o papá e os meus irmãos Oscar e Alberto ia sempre ver o San Lorenzo ao Viejo Gasómetro, o estádio‑berço de todos nós, os cuervos, os corvos, a alcunha com que nos batizaram os adeptos rivais devido ao vestuário negro dos salesianos. A mamã também ia muitas vezes.
Era um futebol romântico, de famílias, as piores palavras que podíamos ouvir nas bancadas eram «vendido» ou «desgraçado», pouco mais do que isso. Antes do jogo, encaminhávamo‑nos para o estádio, levando dois grandes recipientes de vidro que, ao longo do trajeto, deixaríamos numa pizzeria onde o papá parava para fazer a encomenda. No regresso, recuperávamos os dois recipientes que, entretanto, haviam sido enchidos com caracóis com molho picante e acompanhados por uma pizza fumegante cozinhada na pedra. Deste modo, qualquer que tivesse sido o resultado, a seguir haveria uma festa.
Parece‑me sentir o perfume daquela pizza: talvez seja um pouco a minha madeleine de Proust. E, a bem dizer, sair para comer pizza é uma das pequenas coisas que mais falta me faz. Sempre fui um caminhante. Quando era cardeal, adorava andar a pé pelas ruas, e apanhar o metropolitano. Alguns achavam estranho e insistiam em acompanhar‑me, para que fosse de carro, mas, por vezes, a realidade é assim simples: a mim sempre me agradou caminhar. A rua diz‑me muito, aprendo muito na rua. E gosto da cidade, em cima e em baixo, das ruas, das praças, das tabernas, da pizza comida numa mesinha ao ar livre, que tem um gosto muito diferente em relação àquela que se pode levar para casa: sou um citadino na alma.
O Viejo Gasómetro do San Lorenzo já não existe. Em 1979, a ditadura militar obrigou o clube a jogar a sua última partida naquele estádio, que depois foi destruído por uma especulação. O San Lorenzo foi despejado do seu bairro, do Boedo. Durante cerca de quinze anos, a equipa vagueou por vários campos da cidade, até que um novo estádio foi construído. Porém, permaneceu para sempre o desejo de regressar a Boedo no coração dos corvos. Em 2019, o Club Atlético San Lorenzo de Almagro anunciou ter regressado à posse dos terrenos do velho estádio e de querer reconstruir ali o Gasómetro. Disseram‑me que o novo estádio se deveria chamar Papa Francisco, mas a coisa não me agrada muito.
Vi quase todas as partidas domésticas do campeonato de 1946, que vencemos poucos dias antes do meu décimo aniversário e, mais de setenta anos depois, ainda tenho diante dos olhos aquela equipa, tal como se fosse hoje: Blazina, Vanzini, Basso, Zubieta, Greco, Colombo, Imbelloni, Farro, Martino, Silva... Os dez magníficos. E depois... Depois, havia Pontoni. Era René Alejandro Pontoni, o avançado centro, o goleador do San Lorenzo, o arrebatador do Ciclón [Furacão], o meu preferido. Ele não tinha dois pés esquerdos. Chutava com o direito e com o esquerdo quase indiferentemente, era hábil a driblar, criativo, forte no golpe de cabeça, acrobático no pontapé de bicicleta. Podia fazer golo de qualquer maneira, e de qualquer maneira o vi fazê‑lo.
«Vejamos se algum de vós tem a coragem de fazer um golo como o de Pontoni...», disse eu, ao encontrar‑me com as equipas nacionais de futebol da Argentina e de Itália, capitaneadas por Messi e Buffon, num jogo de beneficência, pouco depois de ter sido eleito papa. Aqueles rapazes haviam‑me sorrido um tanto perplexos, provavelmente não sabiam o que pretendia dizer, mas eu tinha aquele golo — aquele tac, tac, tac, golo — gravado na cabeça, tal como muitas das coisas que captam o olhar de uma criança, quando os olhos são uma esponja e, depois, ficam para sempre.
Outubro de 1946, o campeonato está a chegar ao fim e o San Lorenzo joga contra o Racing de Avellaneda: cross da esquerda, Pontoni de costas para a baliza, controla com o peito e, sem nunca deixar a bola tocar no chão, passa‑a para trás, depois, do limite da área, faz partir uma seta que se enfia à direita do guarda‑redes. Goooooooooolo!
Se qualquer golo na América do Sul tem mais «o» do que na Europa, se cada golo, mesmo quando é um golinho, se torna um golaço, imaginem aquele. Eu abraço o meu pai, abraço os meus irmãos, todos se abraçam. Pontoni era para mim, criança, o símbolo daquele jogo, daquele futebol, o estar em companhia, o amor por um desporto que não era apenas uma conta bancária, de tal modo que às sereias milionárias que o queriam na Europa preferiu o seu clube, estar perto da família, dos amigos, de quem gostava dele.
Era um grande e assim permaneceria, mesmo depois do grave incidente de jogo que alguns anos mais tarde assestou um duro golpe na sua carreira. Vagueou um pouco pela América do Sul, Colômbia, Brasil, depois voltou ao San Lorenzo, antes de pendurar as chuteiras e abrir um restaurante. Teve uma bela vida.
O seu filho, que se chama René, tal como o pai, viria ter comigo ao Vaticano, alguns anos depois da eleição.