Figura de proa de uma modalidade que o consagrou como um dos melhores de sempre. Produto do trabalho, do esforço e da dedicação incessantes. Ou simplesmente Cristiano Ronaldo.
Poucas são as palavras que fazem jus aos feitos de uma carreira ímpar, construída sob parâmetros de excelência e sobre bases humildes.
Do Funchal para o mundo
A 5 de fevereiro de 1985, nascia no Funchal, em pleno inverno madeirense, Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. É nome de craque no universo futebolístico - os brasileiros Ronaldo "Fenómeno" e Ronaldinho Gaúcho são disso exemplo -, mas, no caso de Cristiano, a escolha tem ligações à política... norte-americana. Tudo porque o pai, José Dinis Aveiro, era um confesso admirador do então Presidente dos EUA, Ronald Reagan, e tanto José como Dolores "gostavam do nome e diziam que tinha uma sonoridade forte", revelou o próprio CR7 numa entrevista, em 2016.
Os primeiros passos no mundo do futebol foram dados no Andorinha, um clube modesto da freguesia de Santo António, que Cristiano representou entre os 7 e os 9 anos e no qual o pai desempenhava as funções de roupeiro.
Cedo despertou cobiça entre os clubes de maior dimensão no arquipélago e de Santo António voou para o Sítio da Choupana, onde, em 1995, ingressou nas camadas jovens do Nacional.
Dois anos depois, uma dívida de 5 mil contos (25 mil euros) que impedia o Nacional de inscrever jogadores levou o clube madeirense e o Sporting a um acordo: “O presidente do núcleo do Sporting na Madeira, que era também sócio do Nacional, disse-me que tinham um miúdo muito bom e perguntou se podia haver um encontro de contas”, contou Aurélio Pereira, 'homem forte' da formação do Sporting, numa entrevista em 2016. “Fui ver e confirmei tudo o que tinham dito: uma desenvoltura fantástica, velocidade de execução, jogo aéreo...", revelou.
Com apenas 12 anos, um talento que já não cabia nos mais de 700 quilómetros quadrados da ilha seguiu viagem rumo à capital do continente. Da pérola do Atlântico chegava um diamante em bruto que se viria a revelar a joia da coroa no reino do "leão".
O susto de uma vida
Os primeiros tempos no Sporting foram difíceis para o pequeno Cristiano. Sozinho em Lisboa e com a família a quase mil quilómetros de distância, viveu um período de adaptação conturbado, de natural instabilidade emocional para uma criança de 12 anos que se vê, precocemente, tão longe dos que mais ama. Ainda assim, foi sol de pouca dura, pois também precocemente se manifestou a força mental de uma estrela em ascensão.
O maior sobressalto neste período acontece em outubro de 1999. O jogo do campeonato nacional de iniciados frente ao Casa Pia é interrompido pelo árbitro ao minuto 30 - Ronaldo sente-se mal e é substituído. Um princípio de taquicardia.
Em entrevista ao jornalista Rui Miguel Tovar, José do Carmo Francisco, do Jornal Sporting, recorda o que testemunhou: "Era uma manhã própria de outubro, com chuva, frio e vento. Sem que nada o fizesse prever, o árbitro António Cardoso interrompe o jogo para assistir o número 10 do Sporting e chama o enfermeiro Manuel Fontinha (…). O pulso do Ronaldo estava rápido demais e foi preciso uma injeção para suster a taquicardia. Mais tarde, soube-se que o problema era grave e congénito, porque o músculo do coração funcionava em duplicado. Ou seja, batia muito depressa."
O jovem Cristiano teve de ser submetido a uma operação a laser no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, e recomeçou a treinar na semana seguinte. Voltou a ir a jogo apenas sete dias depois do sucedido.
Queimou etapas nos escalões de formação e não tardou até chamar a atenção do treinador romeno László Bölöni, que o lançou em cinco jogos de pré-época da equipa principal do Sporting, no verão de 2001. Tinha apenas 16 anos e acabou por cumprir essa temporada ao serviço dos juniores, apesar de ainda ser juvenil.
Na época seguinte, o salto foi inevitável e a estreia oficial de leão ao peito aconteceu a 14 de agosto de 2002. Entrou aos 58 minutos, no empate a zero entre Sporting e Inter de Milão, na primeira mão da 3.ª pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Os primeiros golos surgiram menos de dois meses depois: um bis de Cristiano no antigo José de Alvalade, no triunfo sobre o Moreirense por 3-0, para o campeonato.
Ronaldo fechou a época de estreia com cinco golos em 31 jogos. Seria a última no Sporting já que, a 6 de agosto de 2003, na inauguração do Estádio José de Alvalade Século XXI, brilhou na vitória leonina perante o Manchester United (3-1) e convenceu Sir Alex Ferguson a não deixar fugir o jovem prodígio.
CR7: o início de uma era
Uma semana depois, com apenas 18 anos, Cristiano Ronaldo era apresentado como reforço do Manchester United, num negócio avaliado em 19 milhões de euros - um valor consideravelmente alto para a realidade do mercado de transferências em 2003.
Cedo se impôs em Old Trafford, sem sentir o peso da mítica camisola 7 dos "red devils", que outrora pertencera a lendas do clube como George Best ou Brian Robson. Começava uma nova era no "Teatro dos Sonhos".
A primeira época trouxe o primeiro troféu: o United conquistou a Taça de Inglaterra após vencer, na final, o Millwall por 3-0. Um triunfo testemunhado por mais de 70 mil espectadores, com o marcador a ser inaugurado por Cristiano nos instantes finais da primeira parte.
A evolução técnica e a transformação física permitiram-lhe tornar-se um dos mais influentes jogadores do Manchester United. Dentro e fora de campo. Foi, por isso, sem surpresa que surgiu a primeira conquista da Premier League, em 2006/07, época na qual apontou 23 golos e foi distinguido como melhor jogador do campeonato.
Se 2006/07 teve um sabor especial para Cristiano, o que dizer da temporada seguinte? Apontou 42 golos em 49 jogos e juntou ao palmarés outra Liga Inglesa - na qual acumulou distinções como melhor marcador e melhor jogador -, uma Supertaça de Inglaterra e, de realce maior, a primeira Liga dos Campeões da carreira. Na final, em Moscovo, apontou o único golo do United e o penálti falhado no desempate, frente ao Chelsea, acabou por ser um mal menor.
Uma época de sonho em que os feitos coletivos levaram ao merecido reconhecimento individual. O estatuto de melhor marcador dos campeonatos europeus valeu-lhe a primeira Bota de Ouro da carreira, à qual juntou a Bola de Ouro, prémio atribuído anualmente pela conceituada revista France Football ao melhor futebolista do mundo.
O "puto maravilha" vestia a capa de Super-Homem e, de jovem promessa do futebol português, passava a ícone do desporto mundial.
A afirmação da lenda
Sem surpresa surgiu, em 2009, uma proposta que iria revolucionar a carreira de CR7. Aos 24 anos, mudou-se de Manchester para Madrid, com o Real a desembolsar 94 milhões de euros, protagonizando a transferência e o contrato mais caros do futebol mundial até então.
O homem que vulgariza recordes bateu mais um no dia em que pisou pela primeira vez o relvado do Santiago Bernabéu, na qualidade de jogador do Real Madrid: nunca tantos adeptos tinham assistido ao vivo à apresentação de um futebolista. Para a memória eterna dos madridistas ficou um efusivo "Hala Madrid".
Tal como em Manchester, cedo se impôs em Madrid como figura central de um clube pautado por um sucesso interno partilhado com o rival Barcelona, mas num clima de quase desespero na procura da tão ansiada 10.ª Liga dos Campeões, que escapava desde 2002.
O fator CR7 foi preponderante na evolução coletiva de um Real Madrid que se reencontrou com a glória de outros tempos. Depois de conquistar campeonato, Taça do Rei e Supertaça de Espanha, "La Décima" chegou em 2014, sob a batuta de um Cristiano Ronaldo de outro planeta: com mais de 50 golos por época entre 2010 e 2016, clamou para si o estatuto de lenda e elevou o Real ao mais elevado patamar do futebol mundial.
Anos dourados em Madrid, onde, além de se ter tornado o melhor marcador de sempre do Real, com 450 golos em 438 jogos, conquistou quatro Champions, três Mundiais de clubes, duas Supertaças europeias, dois campeonatos, duas Taças do Rei e duas Supertaças de Espanha.
Uma era triunfal no clube e na Seleção (onde é recordista de golos e internacionalizações), com as inéditas conquistas do Euro 2016 e da estreante Liga das Nações, cuja fase final decorreu em Portugal, em 2019.
Na galeria abaixo, recorde os principais momentos de CR7 ao serviço de Portugal
No plano individual, os prémios e as distinções sucediam-se a um ritmo avassalador, com o apogeu em 2017, ano em que recebeu a quinta Bola de Ouro da carreira.
Um casamento de sonho que tornou ainda mais imprevisível a separação consumada em 2018, após nove épocas inigualáveis na história do Real Madrid e de Ronaldo.
Um veterano sem medo
Um novo desafio chamou por CR7, novamente num campeonato do top 5 europeu: a Série A italiana. E logo pela porta de entrada mais imponente: a da então heptacampeã Juventus, que procurava, à imagem do Real, um reencontro com a glória europeia do passado.
Aos 33 anos, Cristiano abraçou aquele que foi, provavelmente, o desafio mais exigente da carreira. Três temporadas em Turim sem a tão ambicionada afirmação europeia, que nem os feitos em solo italiano foram capazes de abafar.
Mesmo com a Juventus numa espiral descendente, CR7 voltou a superar-se a si mesmo, ao tornar-se o jogador com mais golos na história do futebol, o futebolista com mais golos numa só época pela Juve (37) e o primeiro a marcar 100 ou mais golos em três dos principais campeonatos europeus (Inglaterra, Espanha e Itália).
"O bom filho à casa torna"
A saída era, desta vez, um cenário inevitável, concretizado em agosto de 2021. Qual conto de fadas, Ronaldo regressou à casa que o viu despontar e afirmar-se no plano internacional: o Manchester United. Um regresso descrito pelo próprio como "um sonho tornado realidade".
Aos 36 anos, voltou a provar que a idade é apenas um número e rapidamente satisfez as expectativas dos milhares de adeptos que, 19 anos antes, viram um jovem endiabrado e irreverente pisar o relvado de Old Trafford, que os anos transformaram numa referência universal.
O encantamento trazido pela nostalgia acabou por se esbater em exibições individuais e coletivas abaixo do expectável, num clube que ainda procura reencontrar-se com a glória do passado, 12 anos depois da saída de Sir Alex Ferguson.
O segundo adeus a Old Trafford ganhou contornos de inevitabilidade devido à tensa relação entre o jogador e o treinador neerlandês Erik ten Hag. Menos de um ano e meio depois, concretizou-se o divórcio, amigável e com juras de amor eterno de ambas as partes.
"Amo o Manchester United e os seus adeptos. Isso nunca mudará", afirmou, na altura, o jogador.
Uma transferência revolucionária
As ambições da Arábia Saudita em afirmar-se no panorama internacional através do desporto começaram a ter maior ímpeto no início da terceira década do século XXI. Ainda assim, uma mudança de um futebolista do continente europeu para um desses países onde os petrodólares parecem ilimitados continuava a ser vista com desconfiança e até preconceito.
Essa forma de pensar pode ainda persistir, mas alterou-se substancialmente em dezembro de 2022, com o anúncio de uma transferência que abalou os alicerces do futebol: Cristiano Ronaldo, reforço do Al Nassr.
Se até então apenas 'trintões' decidiam mudar-se de malas e bagagens para o futebol saudita, esse padrão mudou com a chegada de CR7 a Riade e muitas foram, desde então, as 'estrelas' - cada vez mais jovens e oriundas de clubes de topo mundial - que lhe seguiram as pisadas (Neymar, Rúben Neves, Sadio Mané, Malcom ou Mitrovic são apenas alguns dos exemplos).
Ao percurso no Al Nassr apenas faltam títulos para coroar mais uma etapa de sucesso na carreira de Ronaldo, que continua a vulgarizar recordes: chegou aos 900 golos e, já na presente época, tornou-se o primeiro futebolista da história a marcar pelo menos um golo em 23 temporadas consecutivas.
Em janeiro deste ano, com o 'assédio' do rival Al Hilal a pairar em Riade, assinou, aos 39 anos, o contrato mais valioso da história do futebol: cerca de 200 milhões de euros por ano, incluindo salário base e rendimentos comerciais relacionados com direitos de imagem.
Com uma ambição desmedida e um espírito vencedor incomparável, Cristiano Ronaldo continua a provar - a si e aos outros - que é por exclusivo mérito próprio que o mundo o vê como uma lenda do desporto.